25/12/2008

Na vida e no jogo

"Feliz o que não insiste em ter razão, pois ninguém a tem ou todos a têm."

Jorge Luis Borges - Fragmentos de um Evangelho Apócrifo

Tela - Paul Cezanne

16/12/2008

Um encontro entre Beethoven e Mefistófeles

Quando Beethoven encontrou-se com o poeta Goethe, o que teria este, dito aquele, ninguém sabe - afora algumas lendas, como por exemplo, a da frase “Uma criatura completamente indomável”.

De quem, ou de quê, estaria a falar von Goethe para van Beethoven? O que quis dizer com aquela frase?

Falava dos versos do Fausto? Ou, talvez, do instante em que criara os 4 versos pronunciados pela voz de Mefistófeles, no momento de sua autoapresentação, em resposta à pergunta do Dr. Fausto?

FAUSTO
Que nome tens?

MEFISTÓFELES
Questão de pouco peso
Para quem vota aos termos tal desprezo
E que, afastado sempre da aparência,
Dos seres só procura a essência.

No verso “Para quem vota aos termos tal desprezo“, Mefistófeles refere-se (segundo a nota nº 10 de Marcus Mazzari à tradução de Jenny Klabin Segall, da primeira parte do Fausto, publicada pela Editora 34 - pág. 139) ao desprezo de Fausto pelo “Verbo”, pela “Palavra”, e pelos nomes e “termos” em geral.

Mefistófeles conhece o desprezo de Fausto aos "termos", dando a entender que presenciara, disfarçado de cão, os momentos em que Fausto traduzia o início do Evangelho segundo São João.

Na sua aposta com o Altíssimo, o demônio já indicava ser conhecedor das coisas que agitavam o peito do Dr. Fausto - seu desejo irrefreável por todos os conhecimentos dos mundos.

O ALTÍSSIMO
Do Fausto sabes?

MEFISTÓFELES
O doutor?

O ALTÍSSIMO
Meu servo, sim!

MEFISTÓFELES
De forma estranha ele vos serve, mestre!
Não é, do louco, a nutrição terrestre.
Fermento o impele ao infinito,
Semiconsciente é de seu vão conceito;
Do céu exige o âmbito irrestrito
Como da terra o gozo mais perfeito,
E o que lhe é perto, bem como o infinito,
Não lhe contenta o tumultuoso peito.

O ALTÍSSIMO
Se em confusão me serve ainda agora,
Daqui em breve o levarei à luz.
Quando verdeja o arbusto, o cultor não ignora
Que no fundo fruto e flor produz.

MEFISTÓFELES
Que apostais? perdereis o camarada;
Se o permitirdes, tenho em mira
Levá-lo pela minha estrada!

O ALTÍSSIMO
Enquanto embaixo ele respira,
Nada te vedo neste assunto;
Erra o homem enquanto a algo aspira.

MEFISTÓFELES
Grato vos sou, já que um defunto
Não é lá muito do meu gosto;
Gabo aos que têm viço e verdor no rosto.
E com cadáveres evito o trato;
Sou como gato, em tal, com rato.

O ALTÍSSIMO
Pois bem, por tua conta o deixo!
Subtrai essa alma à sua inata fonte,
E leva-a, se a atraíres pra teu eixo,
Contigo abaixo a tua ponte.
(...)

Principiou-se, então, as insidiosas tentações do demônio para carregar pro seu caminho a alma de Fausto.

Trajando-se como um simples estudante viajante, o demônio pronunciou de sua boca as seguintes palavras aos ouvidos de Fausto:


MEFISTÓFELES

Sou parte da Energia
Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.
(…)
Parte da parte eu sou, que no início tudo era,
Parte da escuridão, que à luz nascença dera,
À luz soberba, que, ora, em brava luta,
O velho espaço, o espaço à Noite-Mãe disputa;

Com tais Palavras, Mefistófeles abre a alma de Fausto.

Com quais Palavras, haveria de abrir a alma de Beethoven?

Alguns anos antes, Beethoven havia criado a 5º Sinfonia em Dó Menor. A angústia do 1º movimento me remete a possíveis presságios da fatalidade que havia de lhe acometer anos depois - quando um de seus sentidos seria-lhe extraído.

Beethoven buscava um encontro com Goethe bem antes do mal lhe usurpar um sentido. Nos anos que se seguiram ao encontro, a surdez saiu da espreita e isolou os ouvidos de Beethoven do resto mundo. 12 anos depois, surdo, deu aos Homens a mais grandiosa sinfonia que já se ouviu até então, e talvez pra sempre: a 9º Sinfonia em Ré Menor.

Aproximando os destinos de Beethoven e do Dr. Fausto, visualizo algumas possibilidades de justaposição. Fausto entregou a alma ao Diabo, em troca de todo o conhecimento do mundo, de todos os tempos. Por que Bethoven não poderia ter ousado trocar a audição pela assinatura de seu nome na maior Sinfonia já composta no mundo, em todos os tempos?

“Assim queremos; assim será.”

MEFISTÓFELES
Daquilo que aos sentidos praz,
Numa hora, mais desfrutarás
Do que, em geral, num ano inteiro.
Dos meigos gênios os cantares,
Os lindos quadros que diluem nos ares,
Não são mendaz, mágica folga.
O teu olfato se há de deliciar,
Distrair-te, após, teu paladar,
E teu sentir, enfim, se empolga.
O prólogo sem mais se abstrai,
Estamos juntos, principiai!

Há coisas impossíveis de serem ditas - ou descritas. Elas pertecem à ordem das coisas que levam o nome de “Inefáveis”. Às coisas dessa ordem podemos inventar senrtidos. Significá-las. Brincar com elas, mesmo levando-as por demais em sério.

Já que inefáveis, por excelência imagináveis.

Escreveu das coisas inefáveis, o poeta Cruz e Souza:

Inefável

Nada há que me domine e que me vença
Quando a minh’alma mudamente acorda…
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.

Sou como um Réu de celestial Sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
D’estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros
E tudo vejo dos encantos raros
E de outra mais serenas madrugadas!

todas as vozes que procuro e chamo
Ouço-as dentro de mim, porque eu as amo
Na minh’alma volteando arrebatadas!

Pois a alma mudamente acorda diante da grandiosa e enérgica obra de Beethoven. Assustadora e apaziguadora. Leve e densa. Profunda e magicamente regozijante.

Atingindo angústias e serenos. Veio longe, até nós, e até nós.

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PS: hoje, 16 de dezembro de 2008, faz 238 anos do nascimento de Beethoven.

04/12/2008

Entre o Celo e a Tela

Entre o Celo e a Tela,
O céu e a terra se (como) movem...
Paira, translúcido, o olhar-de-ouvido
Dolorido e Colorido que
Agiganta a pequenez de quem,
Em letras, imprime impressões-de-Tez.

É no silêncio que silencia o sereno;
Desvendando em tom-de-cores,
O tom da música-inimaginável.
Insondável é Sondado o som.
Sua ausência assombra...
À espreita, que acorde ataca?

Ata-se, num gesto, o sono
Da angústia-de-poeta-profundo
Que penetra o ébrio instante da Criação.
Com mil braços cria a mão-frenética!
Asceta do ascetismo servil:
Assim se olvida a vida vil.

No Som-das-Cores, a Arte dança.
Tem Dó de Si, este poeta-Bemol
Que ao Sol se encanta...
Entre o Olho e a Obra,
No ouvido sobra a Sombra-invisível

Do Pincel-batuta que rege-em-Traços...

No tempero da Orquestra-Braços
Tem, pelo menos, mil Laços
O destempero insólito do Celo-Solo.
Ledo engano-de-poeta-Cego-Surdo...
Solo é o poeta-Solitário,
Que desenha no imaginário

O Tom-de-Acordes ao Som-de-Cores


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* Poema-ensaio inspirado e dedicado à tela do pintor Roberto Ploeg, "O Violoncelista" (Óleo sobre tela, 120 x 105).