18/06/2012

"Ode a Fernando Pessoa", Roberto Piva




O rádio toca Stravinsky para homens surdos e eu recomponho na minha imaginação

a tua vida triste passada em Lisboa.

Ó Mestre da plenitude da Vida cavalgada em Emoções,

Eu e meus amigos te saudamos!

Onde estarás sentindo agora?

Eu te chamo do meio da multidão com minha voz arrebatada,

A ti, que és também Caeiro, Reis, Tu-mesmo, mas é como Campos que vou

saudar-te, e sei que não ficarás sentido por isso.

Quero oferecer-te o palpitar dos meus dias e noites,

A ti, que escutaste tudo quanto se passou no universo,

Grande Aventureiro do Desconhecido, o canto que me ensinaste foi de libertação.

Quando leio teus poemas, alastra-se pela minh'alma dentro um comichão de

saudade da Grande Vida,

Da Grande Vida batida de sol dos trópicos,

Da Grande Vida de aventuras marítimas salpicada de crimes,

Da grande vida dos piratas, Césares do Mar Antigo.

Teus poemas são gritos alegras de Posse,

Vibração nascida com o Mundo, diálogos contínuos com a Morte,

Amor feito a força com toda Terra.




Sempre levo teus poemas na alma e todos os meus amigos fazem o mesmo.

Sei que não sofres fisicamente pelos que estão doentes de Saudade, mas de

Madrugada; quando exaustos nos sentamos nas praças, Tu estás conosco, eu

sei disso, e te respiramos na brisa.

Quero que venhas compartilhar conosco as orgias da meia-noite, queremos ser

para ti mais do que para o resto do mundo.

Fernando Pessoa, Grande Mestre, em que direção aponta tua loucura esta noite?

Que paisagens são estas?

Quem são estes descabelados com gestos de bailarinos?




Vamos, o subúrbio da cidade espera nossa aventura,

As meninas já abandonaram o sono das famílias,

Adolescentes iletrados nos esperam nos parques.

Vamos com o vento nas folhagens, pelos planetas, cavalgando vaga-lumes cegos até o Infinito.

Nós, tenebrosos vagabundos de São Paulo, te ofertamos em turíbulo para uma

bacanal em espuma e fúria.

Quero violar todas as superfícies e todos os homens da superfície, Vamos viver para além da burguesia triste que domina meu país alegremente

Antropófago.

Todos os desconhecidos se aproximam de nós.

Ah, vamos girar juntos pela cidade, não importa o que faças ou quem sejas, eu te

abraço, vamos!

Alimentar o resto da vida com uma hora de loucura, mandar à merda todos os deveres, chutar os padres quando passarmos por eles nas ruas, amar os

pederastas pelo simples prazer de traí-los depois,

Amar livremente mulheres, adolescentes, desobedecer integralmente uma ordem

por cumprir, numa orgia insaciável e insaciada de todos os propósitos-

Sombra.

Em mim e em Ti todos os ritmos da alma humana, todos os risos, todos os olhares,

todos os passos, os crimes, as fugas, Todos os êxtases sentidos de uma vez,

Todas as vidas vividas num minuto Completo e Eterno,

Eu e Tu, Toda a Vida!

Fernando, vamos ler Kierkegaard e Nietzsche no Jardim Trianon pela manhã,

enquanto as crianças brincam na gangorra ao lado.

Vamos percorrer as vielas do centro aos domingos quando toda a gente decente

dorme, e só adolescentes bêbados e putas encontram-se na noite.

Tu, todas as crianças vivazes e sonolentas,

Carícia obscena que o rapazito de olheiras fez ao companheiro de classe e o

professor não vê;

Tu, o Ampliado, latitude-longitude, Portugal África Brasil Angola Lisboa São

Paulo e o resto do mundo,

Abraçado com Sá-Carneiro pela Rua do Ouro acima, de mãos dadas com Mário de Andrade no Largo do Arouche.

Tu, o rumor dos planaltos, tumulto do tráfego na hora do ¿rush¿, repique dos

sinos de São Bento, hora tristonha do entardecer visto do Viaduto do Chá,

Digo em sussurro teus poemas ao ouvido do Brasil, adolescente moreno empinando papagaios na América.

Vamos ver a luz da Aurora chispando nas janelas dos edifícios, escorrendo pelas

águas do Amazonas, batendo em chapa na caatinga nordestina, debruçando

no Corcovado,

Ouçamos a bossa-nova deitados na palma da mão do Cristo e a batucada vinda

diretamente do coração do morro.

Tu, a selvagem inocência nos beijos dos que se amam,

Tu o desengajado, o repentino, o livre.

Agora, vem comigo ao Bar, e beberemos de tudo nunca passando pela caixa,

Vamos ao Brás beber vinho e comer pizza no Lucas, para depois vomitarmos

tudo de cima da ponte,

Vem comigo, eu te mostrarei tudo: o Largo do Arouche à tarde, o Jardim da Luz

pela manhã, veremos os bondes gingando nos trilhos da Avenida, assaltaremos o Fasano, iremos ver ¿as luzes do Cambuci pelas noites de crime¿,

onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio,

Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo do Mário de Andrade

(ai de nós se ele desperta!),

Mas vamos respirar a Noite do alto da Serra do Mar: quero ver as estrelas refletidas

em teus olhos.

Sobre as crianças que dormem, tuas palavras dormem; eu deles me aproximo e

dou-lhes um beijo familiar na face direita.

Teu canto para mim foi música de redenção,

Para tudo e todos a recíproca atração de Alma e Corpo.

Doce intermediário entre nós e a minha maneira predileta de pecar.

Descartes tomando banho-maria, penso, logo minto, na cidade futura, industrial

e inútil.

Mundo, fruto amadurecido em meus braços arqueados de te embalar,

Resumirei para Ti a minha história:

Venho aos trambolhões pelos séculos,

Encarno todos os fora da lei e todos os desajustados,

Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum louco sexual que eu

não acompanhe para ser julgado e condenado;

Desconheço exame de consciência, nunca tive remorsos, sou como um lobo

dissonante nas lonjuras de Deus.

Os que me amam dançam nas sepulturas.

Da vidraça aberta olho as estrelas disseminadas no céu; onde estás, Mestre Fernando?

Foste levar a desobediência aos aplicados meninos do Jardim América?

Dás um lírio para quem fugir de casa?

Grande indisciplinador, é verdade?




Vamos ao norte amar as coisas divinamente rudes.

Vamos lá, Fernando, dançar maxixe na Bahia e beber cerveja até cair com um

baque surdo no centro da Cidade Baixa.

Sabes que há mais vida num beco da Bahia ou num morro carioca do que em

toda São Paulo?

São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do Brasil?

Até teus comunistas são mais puritanos do que padres.

Pardos burocratas de São Paulo, vamos fugir para as praias?

Ó cidade das sempiternas mesmices, quando te racharás ao meio?

Quero cuspir no olho do teu Governador e queimar os troncos medrosos da floresta

humana.

Ó Faculdade de Direito, antro de cavalgaduras eloqüentes da masturbação transferida!

Ó mocidade sufocada nas Igrejas, vamos ao ar puro das manhãs de setembro!

Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?

Fornalha do meu Tédio transbordando até o Espasmo.

Horda de bugres galopando a minha raiva!

Sei que não há horizontes para a minha inquietação sem nexo,

Não me limitem, mercadores!

Quero estar livre no meio do Dilúvio!

Quero beber todos os delírios e todas as loucuras, mais profundamente que

qualquer Deus!

Põe-te daqui para fora, policiamento familiar da alma dos fortes: eu quero ser

como um raio para vós!

Violência sincopada de todos os "boxeurs"!

Brasileira do Chiado em dias de porre de absinto.

Arcabouço de todas as náuseas da vida levada em carícias de Infinito.

Tudo dói na tua alma, Nando, tudo te penetra, e eu sinto contigo o íntimo tédio

de tudo.

Realizarei todos os teus poemas, imaginando como eu seria feliz se pudesse estar

contigo e ser tua Sombra.

25/10/2011

Greve de jornalistas, radialistas e gráficos de PE



Tá.
Eu sei.
Essa greve foi em 1990 - não foi decretada hoje.

Mas, né?: recordar é viver, e uma trolladinha histórica não mal faz a ninguém...

Afinal, tem amigo jornalista que nem sequer lembra que tem direito de fazer greve.

19/05/2011

Fragmento dos Fragmentos de um evangelho apócrifo

"Eu não falo de vingança nem de perdãoo esquecimento é a única vingança e o único perdão"


J. L. Borges

15/12/2010

Morte na zona, danação eterna e indulgência papal… no interior do Piauí nos anos 50

.

Um conto – ou talvez crônica – de autoria de Sidarta
Extraído no blog A Poção de Panoramix

Há uma região no estado do Piauí, na fronteira com o Maranhão, conhecida como “caminho do céu”, pois quase todas as localidades na estrada principal possuem nomes de santos católicos.

A última localidade nessa estrada poderia ter qualquer nome, mas achei mais apropriado chamá-la de “Anus Mundi”, uma vez que parece ser isso mesmo e não me lembro, nem mais achei no Google Earth  o nome real do famoso lugar.

Nos anos 1940, saiu de Anus Mundi para ir estudar em Teresina um rapaz de futuro promissor, não tão baixinho, de cabeça tão pequena e sem pescoço como a maioria dos seus conterrâneos, e também dotado de uma boa voz (era locutor esportivo e torcia invariavelmente pelo Anus Mundi Futebol Clube – AMFC do Piauí).

Em Teresina, estudou direito e, nos anos 1950, conseguiu publicar um artigo em um jornal com uma proposta de tese sobre uma questão polêmica: atirar em alguém pelas costas, sem a vítima perceber quem estava atirando, era um crime maior ou menor do que atirar de frente?

O caso é que matava-se e morria-se muito de bala em Anus Mundi e redondezas por aqueles anos e, assim, a tese podia ter interesse prático!

Um advogado experiente do Ceará, aproveitou-se da discussão e passou a insinuar que se o criminoso conseguisse pegar a vítima olhando para um espelho, essa não poderia alegar que o tiro foi dado pelas costas (se escapasse do tiro) pois, para a vítima, ela percebeu o tiro como que vindo de frente pelo espelho.

Os advogados estavam tomando consciência das vantagens de conhecer um pouco da teoria da relatividade de Einstein, além do arsenal comum de lógica elementar.

A tese ganhou discussão e o nobre, jovem e promissor advogado conseguiu uma bolsa de estudos para fazer um estágio na Itália, onde conheceu o papa de Roma e também aproveitou a viagem, e parte do dinheiro economizado da bolsa, e comprou do Vaticano um certificado de indulgência, que supostamente lhe perdoava automaticamente alguns tipos de pecados, sem ter que  os confessar a um padreco qualquer.

Dentre os pecados incluídos no certificado (e aí eu desconfio que houve falcatrua, pois só era mostrada uma cópia heliográfica do certificado… o original o proprietário dizia que o mantinha em um cofre secreto), estava a dispensa da danação eterna se o proprietário do tal certificado emitido pelo Vaticano de Roma morresse, por exemplo, de repente… na zona.

Já no fim dos anos 1950, o bispo da diocese que englobava a localidade de Anus Mundi anunciou uma visita pastoral, um evento de importância monumental para a comunidade anusmundense.
Não há como descrever os preparativos dos moradores para a chegada do bispo, e até pessoas que já tinham deixado Anus Mundi para ir morar em Fortaleza, em São Luis e em Teresina (diziam que havia anusmundense até em São Paulo) vieram para prestigiar a visita do bispo.

Dentre os anusmundenses notáveis, veio o brilhante advogado que foi estudar em Teresina nos anos 1940 (já lidava em Teresina com uma bem conceituada banca), o proprietário da indulgencia papal.

Para não esticar muito a estória, vou rápido aos finalmente.

Na véspera da chegada do bispo, um vereador local muito querido teve o azar de morrer na zona…. e a notícia logo chegou aos ouvidos do bispo, assim que colocou os pés em Anus Mundi.

A pena para a alma do querido e azarado vereador era excomunhão seguida de danação eterna, não havia dúvidas.

Foi aí que o brilhante advogado anusmundense, o criador da idéia que gerou depois a tese da relatividade do caminho da bala diante de um espelho, resolveu oferecer alugar (vender? só por uma fortuna incomensurável) o seu papel de indulgência papal “até para morte na zona”, para que o documento fosse recopiado com o nome do recém falecido político, e apresentado ao bispo para que se conseguisse o perdão para a alma do querido vereador “Zé das Nêgas”.

Iniciada a coleta de donativos para a aquisição “da cópia da cópia” do documento papal, acertou-se com o bispo que “Zé das Negas” não iria para o inferno, mas que a igreja ficaria com todo o dinheiro coletado para alugar e fazer uma cópia do certificado de indulgência para “morte na zona”.

Foi a única vez que eu soube que um advogado esperto não conseguiu fechar um negócio com um cliente “realmente em desespero”; o advogado chefe da banca do concorrente era simplesmente um delegado oficial comissionado de Deus na terra.

14/11/2010

Saldo Negativo, por Fernando Correia Pina



Dói muito mais arrancar um cabelo de um europeu
que amputar uma perna, a frio, de um africano.
Passa mais fome um francês com três refeições por dia
que um sudanês com um rato por semana.

É muito mais doente um alemão com gripe
que um indiano com lepra.
Sofre muito mais uma americana com caspa
que uma iraquiana sem leite para os filhos.

É mais perverso cancelar o cartão de crédito de um belga
que roubar o pão da boca de um tailandês.
É muito mais grave jogar um papel ao chão na Suíça
que queimar uma floresta inteira no Brasil.

É muito mais intolerável o xador de uma muçulmana
que o drama de mil desempregados em Espanha.
É mais obscena a falta de papel higiênico num lar sueco
que a de água potável em dez aldeias do Sudão.

É mais inconcebível a escassez de gasolina na Holanda
que a de insulina nas Honduras.
É mais revoltante um português sem celular
que um moçambicano sem livros para estudar.

É mais triste uma laranjeira seca num kibutz hebreu
que a demolição de um lar na Palestina.

Traumatiza mais a falta de uma Barbie de uma menina inglesa
que a visão do assassínio dos pais de um menino ugandês

e isto não são versos; isto são débitos
numa conta sem provisão do Ocidente.


Fernando Correia Pina, poeta português. 

25/10/2010

Bolero de Ravel


Recomendo aumentar o volume do som. Pode aumentar bastante. O quanto possível, até ao limite que não lhe estoure os fones do som nem os tímpanos dos ouvidos. 
Se tens vizinhos, faça-o antes das 22h, ou meta-se uns fones dentro das orelhas. 

O resto é sentir. Escutar.

13/10/2010

Algo de Fela Kuti



Fela Kuti é uma figura excepcional que fundou, na década de 1970, uma república autônoma dentro da Nigéria. Escrevi brevemente sobre ele há tempos no blog acerto de contas. Ultimamente, tenho escutado muito suas músicas, e coloco algumas aqui. No velho post do Acerto, escrevi o seguinte:

Conheci a música e a história de Fela Kuti há uns 3 anos, através de um amigo que me mostrou um disco e contou algumas histórias. O som é muito bom, contagiante. Além disso, Fela foi uma grande figura.

Nascido no ano de 1938, em uma família de classe média da Nigéria, foi estudar medicina em Londres, em 1958, mas seu destino era mesmo a música. Estudou no Trinity College of Music.

Sua história de vida é repleta de passagens insólitas.

No início da década de 1970, quando retornou à Nigéria, Fela fundou a chamada República Kalakuta – que era um estúdio e casa para as pessoas ligadas à sua banda (Afrika 70) e, posteriormente, ele proclamou independência à comuna.

Consta que certa vez, em 1974, a polícia ‘plantou’ um cigarrinho de maconha pra prendê-lo (ele era odiado pelo governo), mas ele acabou o comendo, pra livrar-se do flagrante. A polícia o levou mesmo assim, sob custódia, para fazer um exame de fezes e provar que havia maconha em posse de Fela.

Mas ele conseguiu a ajuda de outros detentos, e pegou um punhado de cocô emprestado e o entregou à polícia. Daí ele conseguiu ser libertado. Foi então que nasceu Expensive Shit (“merda cara”).

Mas a insolitude de sua vida não se resume a este caso.

O lançamento de Zombie (que era uma metáfora para designar criticamente os soldados das forças armadas da Nigéria) provocou muito tumulto. O sucesso do álbum enfureceu o governo e resultou num ataque feroz à República. Em 1978, Fela casou-se com 27 mulheres (muitas ligadas à banda dele, como dançarinas ou vocalistas). O evento marcava o aniversário do ataque à República Kalakuta.

Fela ainda se candidatou à presidência, em 1979, mas sua candidatura foi recusada.

A biografia do camarada é interessantíssima, marcada por uma politização que buscava lutar contra preconceitos, atingir liberdades individuais e difundir a consciência dos direitos do povo negro no mundo.

Sua música também é muito interessante. Mesclando vários ritmos como o Funk, o Jazz e cânticos africanos, criou uma Black Music original para expressar suas ideias e seus sentimentos.

Confiram mais alguns vídeos:

Zombie


Water no get enemy


Expensive Shit

24/07/2010

O Mendigo Maltrapilho da Rua do Mercado


CHOVIA. A rua, deserta e fria, não estava convidativa. Sair era uma provocação ao bom senso. Em verdade, não chovia: gotejavam poucos pingos de umidade repulsiva. Trajei-me apropriadamente como se deve trajar um filósofo experimental: ao modo da ocasião. Enfastiado da ausência de perigo e do conforto de meu aquecido lar, vesti-me ao tom do clima e parti de minha caverna para ter com os outros.

Na rua poucas almas caminhavam. Menos paravam recostadas em postes ou árvores: cálidas de fungos úmidos.

O pedaço de rua, que, aqui, convém-nos saber: asfaltada, com velhos sobrados reformados, postes como pilares de fiações caóticas, canaletas de meio-fio embalsamadas por água e lodo, duas árvores na calçada mal conservada, separadas uma da outra dez metros – os dez metros que serão palco de nossa estória.

Nada nos custa gastar mais algumas linhas na descrição de nossos dez metros de rua e calçada: olhando na direção norte-sul: ao lado direito vêem-se seis sobrados. O primeiro deles, uma pequena venda, com fachada em azulejo português envelhecido; o segundo, em péssimo estado de conservação, cor de verde-nojento: em sua parte baixa habitava um lodo já vivido e caduco, porém não tão decrépito quanto o restante da fachada deste repugnoso sobrado.

Após este, outro sobrado cor-de-rosa murcha: duas janelas e uma imensa porta de madeira (a partir da qual julgava-se que ali deveria viver um gigante!...). Dali até a segunda árvore, mais três sobrados: um azul, outro rosa e o terceiro e sexto e último de nosso cenário, amarelo recém pintado.

Conforme o céu foi clareando, as pessoas foram-se atirando à rua; a umidade, reduzindo pouco a pouco. Passos e vozes movimentavam-se no ar e na calçada turva de acontecimentos.

No pé da árvore em frente à venda, sentou-se um mendigo maltrapilho fumando um filtro de cigarro.

Na venda, homens conversavam sobre o ocaso da puta da esquina, degolada por um cliente desconhecido. Tal conversa era atravessada pela rouca voz do mendigo maltrapilho – que trabalhava e pedia cigarros nos seus minutos de folga.

Me dá um cigarro!” – Falava penosamente, estas que pareciam ser as únicas palavras conhecidas pelo pedinte. Toda vez que soava esta voz um cachorro sarnento deitado tranqüilamente ao lado dele levantava as orelhas, num gesto de cumplicidade.

Do lado esquerdo da rua, estendia-se toda a parte frontal de um mercado, cuja fachada, cor de vermelho-velho-alaranjado, abrigava diversas lojinhas.

Ao passo que avançavam as horas, mais transeuntes saíam às ruas: mais demanda para o mendigo-maltrapilho... Que fumava e prestava seus serviços de Demiurgo-do-perdão, arauto da caridade piedosa.

Vá lá! uma moedinha para o mendigo-maltrapilho ser um fio de indulgência!

Aqui se faz, a tu se paga!

Passavam neste instante seis humanistas pela frente da venda. Sentindo compaixão daquele ser recostado ao pé da árvore, quatro deles se abaixaram para ter com o mendigo:

– “Estás bem, amigo?” Disse um deles, repousando sua mão direita sobre o ombro do mendigo-maltrapilho, que fumava.

– “...!”. Respondeu o mendigo, atirando-lhe um olhar oblíquo, dando o último trago em seu filtro de cigarro e o atirando por cima do braço do humanista pousado sobre seu ombro, em um gesto que afastou assaz a mão do homem.

– “Estamos aqui para lhe ajudar.” Argumentou o segundo.

– “Me dá um cigarro!” Disse-lhe, olhando raso, rápido e sincero, olho no olho, como quem cativa a permanência do outro com a discrição própria de um ser refinado.

Os outros dois humanistas ficaram em pé, alertando aos transeuntes o absurdo de haver um homem naquelas condições, em pleno século XXI.

Da venda, eu, de soslaio, pesquei alguns trechos do discurso dos dois humanistas que estavam em pé: “Vejam como este homem sofre! Isto é fruto do capitalismo!” e, “O sistema corrói a dignidade humana!” ou, ainda, “Temos que destruir o... e implantar uma sociedade...!

Perdoe-me o leitor pela falta de empenho em transcrever todo o discurso; confesso que a conversa ao lado sobre a degola da puta da esquina estava bem mais interessante.

Aos poucos, a situação em frente à venda foi ganhando proporção intrigante; a ponto de tornar-se mais interessante do que o papo sobre o destino da puta.

Mais e mais pessoas se juntavam aos humanistas em redor do mendigo-maltrapilho. O mendigo, sentado, nada falava, apenas fumava, agradecia algumas indulgências com um breve movimento de cabeça ou piscar de olhos. De quando em quando se ouvia sua voz rouca emitir um diligente “Me dá um cigarro!”.

Pessoas foram se sentando, solidárias ao estado miserável no qual se encontrava o mendigo-maltrapilho. Todos atentos e cegos ao discurso dos humanistas, solidarizavam-se com o estado de miséria surda de toda a situação.

Na esquina, um caminhão acabara de estacionar. O mendigo olhou-o largamente... de tal forma que me pareceu ver sua alma se ausentando do lugar onde se achava seu corpo e indo ter com o caminhão...

Gozando de status elevado, o mendigo-maltrapilho apenas abria a boca e as pessoas em volta lutavam para ver quem conseguiria primeiro lhe meter um cigarro entre os dentes, e outros mais se digladiavam para acendê-lo. Quase sempre, o primeiro humanista conseguia, por estar em posição privilegiada... O que foi, aos poucos, despertando inveja nos demais presentes.

Em poucos minutos a calçada estava lotada de gente piedosa, vinda de todas as partes (até sotaque americano pude identificar!). Todos embriagados de compaixão pelo mendigo-maltrapilho e pelas mazelas do mundo, multiplicavam a dor – supostamente – existenciada pelo silencioso e sofrível mendigo, que pedia cigarros. Até eu tentei (sem sucesso) conceder um cigarro a ele.

Algumas velhinhas choravam, crianças assistiam com olhos esbugalhados de assombro e estranhamento àquele espetáculo inédito na rua. Os homens gritavam enlouquecidos contra o mundo; ouviam-se preces em voz baixa, clamando a Deus que acabasse com aquele sofrimento coletivo...

Uma leve chuva começou a cair como lágrimas de um deus sensivelmente humano e piedoso. De leve, a chuva engrossou em poucos segundos. O mendigo-maltrapilho ergueu-se. As pessoas ao redor se calaram, entreolhando-se interrogativamente como quem espera uma ação – esperavam talvez algum discurso que anunciasse uma fatalidade metafísica e transcendental ?

Um gesto de revolta imanente e revolucionário? Uma convocação para a luta? Mas, para a luta de quem?

Com olhar profético e solene o mendigo disse a todos que ali se achavam:

Alguém me dá um cigarro!

E se foi afastando a passos lentos, ultrapassando sobrado a sobrado, até recostar-se sozinho, no pé da outra árvore, dez metros ao sul, aonde contou suas moedas e acendeu seu cigarro. Ergueu a vista e observou a multidão piedosa e intrigada ainda em lágrimas mudas, e viu o cão sarnento vindo em sua direção.

Na esquina, o caminhão ligara seu motor e partiu elegante e soberbo em um movimento ligeiro e preciso diluindo aos poucos todo o cenário e ganhando velocidade rapidamente derrapou na umidade divina da rua subindo a calçada e trucidando 90% daqueles que ali se achavam começando pelos humanistas, depois as velhas, os homens e as mulheres.

As crianças, semelhantes a rodas girando sobre si mesmas, em gestos habilidosos e astutos, salvaram-se para um novo começar.

O mendigo-já-não-tão-maltrapilho (quando comparado àqueles corpos mutilados) parecia divertir-se como nenhum homem jamais se divertira antes! Desde que há homem na Terra - e há tão pouco tempo que existem homens na Terra!

O mendigo passara por entre os homens como por entre os animais...
Assistiu a tudo dez metros ao longe. Dei as costas para o filósofo tentador que eu experimentara e retornei para o minha segura e aquecida caverna cor-de-rosa murcha.

04/07/2010

Frase que despercebida passa


Frase que despercebida passa...
e fica, enquanto se caminha a passos leves De rua molhada que seca na brisa Do arrepio do corpo de chão de piche Da atenção a ti que passas, que voltas e que a passar retornará no semblante Esquecido da face que anda e vai No rumo do andar em ritmo de gotas trôpegas No suor que a chuva dá no chão da rua quando cai.

Frase que despercebida passa...
vem que eu vou indo até o esquecimento Que me lembrará de ti a ecoar em mim As falas de seus substratos mais eloquentes e gélidos De sol de frio que arde na tempestade que beija os lábios Transeuntes do corpo que segue escorrendo partículas de ar De tempo veloz num olho e no outro lento.

Frase que despercebida passa...
perco-lhe a hora no intervalo da minha atenção Quando ocupada com o vão das coisas ordinárias ela fica e me trava Os sentidos que arremesso nas fossas que beiram às bordas dos caminhos que sigo Nem cego nem surdo mas quase mudo de lado na rua Que meus pés pisam a busca de andarem sempre.


Emulação do Elixir


É bela a chuva que cai, agora, por sobre a natureza morta.

A rua o barro é o mais vivo no calcanhar que paira à porta.
Mas cadê as flores que não brotam nas rochas da estima?!
E o olhar olha a vida... às visões de mundo... Que lástima!
Qualquer merda de sonho, se não é matéria, é devaneio!

- Bate à porta, monte de estrume! Faz da alma, do peito, frito cortume! O teu lume inteiro te carregará lá pro meio da bosta em que há de atolar toda esperança que se a ter tu te acostumes!


- Vem jantar... Como queiras, à mesa ou ao chão.
- Dispenso todas as falas, e elas me dispensam igualmente.

Ah!, perda de tempo, que tua glória torne a tudo pó a emular o elixir da vida!