23/10/2008

Na Plenitude da Metade


Eu te vi, Século meu!
E, te olhei profundamente...
Olhei-te das aparências às entranhas.
E, senti que te olhar era inútil
– Que nada poderia fazer.

Nem falar, nem tocar, nem gritar-te:
Aonde vais?

Percebi que tu ias mal, Século meu...
Que as coisas em ti não se moviam,
Ao mesmo tempo em que não paravam
Nunca!

Tuas velocidades escondem tuas lerdezas.
E, tu bem gostas, Século meu...
Brincas com cores,
Como velhos com dissabores.

Vejo-te dançar de mãos atadas e olhos vendados
– Mas, sei: tu tens hábeis pés e ouvidos prendados.

Habitas uma redoma, Século meu!
E, ela é de límpido cristal.
Poucos olhos podem vislumbrá-la,
Assim como poucos dedos ousam-te tocar.

Tu definhas
(Não parece, mas tu cais...)

Aonde vais, Século Meu?

17/10/2008

...

"um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lórca um éluard um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores"


"quatro dias sem te ver

e não mudaste nada
falta açúcar na limonada
me perdi da minha namorada
nadei nadei e não dei em nada
sempre o mesmo poeta de bosta
perdendo tempo com a humanidade"

* Pedaços de P. Leminski

11/10/2008

A fome de dias depois

Aquele ser não tinha nome. Nem números. Ouvira certa vez um nome, que já lhe parecia, agora, algo estranho e irreconhecível. De um reconhecimento breve e distante, que não sabia identificar ao certo de onde provinha. Tudo lhe era estranho.

Comia restos quando restava algo nos tambores de plástico que repousavam gordos nos magros asfaltos. Dia a dia, mais menos restos lhe restava. Sobravam-lhe as faltas de resto, que devorava como se fossem belos pratos nobres. Não distinguia gostos, pois os deuses lhe subtraíram as faculdades do paladar.

Sua sorte é que lhe restavam as pernas (apesar de só possuir um braço e meio). Embora magras, serviam-lhes para seu único objetivo: andar em busca de restos de pedaços.

E assim passavam seus dias trôpegos.

Quando, porém, viu-se na metrópole dos desertos, ele já não encontrava nem pedaços de restos. Menos e menos tambores de restos lhe cruzavam o caminho. Sedento de fome (que lhe era o único motor de sua existência), ele caminhava.

E caminhava, caminhava...

Já não tinha resto com que se deleitar. Sobravam-lhe todas as faltas de pedaços. Na falta plena, passou a comer seus próprios produtos: as fezes.

Porém, a cada dia obrava menos. Passou, então, a armazenar os excedentes de sua produção. Estocava-os para comer sempre que sentisse fome. E comia embuído com muita dignidade aquela pasta marrom que acumulava em sacos plásticos envelhecidos pelo calor e pelo tempo.

No entanto, percebeu que a cada dia sua produção diminuía mais e mais. Lembrara-se da única vez que haviam lhe ensinado alguma coisa. Lembrava, ainda que vagamente, uma frase:

"Seus órgãos consomem seus alimentos."

Não sabia ao certo o que eram órgãos. Mas, sabia que essas coisas estavam dentro de seu corpo. Elaborou, entredentes, um plano, chegando à uma conclusão:

"Ou acabo com esses malditos órgãos, ou eles acabam com meus alimentos."

E, assim, detalhou seu plano riscando desenhos no chão das areias-de-seu-deserto.

Assim, iniciou seu plano, rasgando a barriga e retirando pedaços de carne (que sangravam muito). Fora juntando esses pedaços enquanto retirava outros mais. Ao fim do processo, estava tonto e com fome.

Recostou as carnes da barriga, e envolveu-as com um pano velho e sujo que havia preparado especialmente para aquela ocasião.

Ao fim, deitou para descansar um pouco. Minutos depois, acordou, e sentia muita fome. Vendo todas aquelas suculentas carnes que repousavam ainda quentes ao seu lado, devorou-as como nunca antes havia se deleitado...

No dia seguinte, percebeu que de fato sua massa fecal havia aumentado. Percebeu que seu idéia tinha sido genial, e dado mais do que certo.

Passou alguns dias sem andar, pois estava muito fraco. Mas, logo se sentiu revigorado - e obrando como nunca. Jamais tivera banquetes tão ricos.

Ele regressou de seu deserto, para ter com os outros seres. Sua aparência nunca fora das melhores. Agora, então, estava pior que nunca. Envelhecera rapidamente. No seu trajeto, retornando do seu deserto, não encontrara nenhum'alma viva - que dirá corpos...

Desfaleceu-se pouco a pouco, nas bordas de seu deserto. Avistara entre o sol e a sombra, um corpo de homem. Era semelhante a um componente de algum órgão do ministério, pois vestia farda, e estampava um brilhante crachá...

Tal homem, possesso que estava de piedade, resolveu dar cabo no sofrimento que supunha ser o daquele ser, aplicando-lhe golpes certeiros em sua cabeça, com um porrete de pau enorme - em nome de Deus.

Dias depois, estavam alguns outros seres a devorar aquele corpo-sem-órgãos.

O Capitão Fracasso

"Entretanto, se não agarrasse com unhas e dentes tal ocasião, provavelmente nunca lhe ocorreria outra semelhante. Afinal de contas, era nada mais nada menos que o sonho de sua vida."

* Pedaço de "O Capitão Fracasso", de Téophile Gautier. Obs: livro que abdiquei a leitura aos 15 anos; e, agora, resolvi ler - não por destino, nem por acaso...