29/04/2008

Se não pode falar, cale-se

Hoje é aniversário de morte de Wittgenstein. Morreu em 1951.

"
Em outras palavras, vejo agora que estas expressões carentes de sentido não careciam de sentido por não ter ainda encontrado as expressões corretas, mas sua falta de sentido constituía sua própria essência. Isto porque a única coisa que eu pretendia com elas era, precisamente, ir além do mundo, o que é o mesmo que ir além da linguagem significativa. Toda minha tendência é correr contra os limites da linguagem. Esta corrida contra as paredes de nossa jaula é perfeita e absolutamente desesperançada."

Ou ainda:

Não é possível dizer ou buscar lógica sobre todas as coisas. Há coisas sobre as quais apenas se deve calar.”

Então, toma F. Pessoa:

Estalagem da Razão
"A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível.”

Pra quem estiver disposto, dá uma lida nessa conferência, clicando no título abaixo:
* Conferência sobre Ética

28/04/2008

O Guardador de Verdades

Pega esse cretino! Venha cá, seu pilantra! Agora a gente vai te dar um corretivo e você vai aprender a se comportar direitinho!

O guarda agarrou XXX pela gola da camisa e derrubou ele no chão. Algemando suas mãos, arrastou-o até o camburão, que se encontrava parado com o motor já acionado, cerca de uns 15 metros à frente. Jogou-o bruscamente na mala do carro, batendo-a com força, e entrou pela porta traseira e mandou o outro policial que dirigia partir.

Circularam pela cidade durante 10 minutos. XXX suava frio e tremia. Não sabia o que lhe aguardava.

P7, pára o carro ali, entre os armazéns. Vamos mostrar pra esse imbecil o que é a Verdade!

Ok, C9. Respondeu P7.

Pararam o carro em uma rua escura, entre dois grandes galpões. Os três policiais desceram simultaneamente do carro. C9 abriu a mala, e ordenou que B4 tirasse XXX. B4, de pronto, atendeu a ordem de C9, que nesse momento falava em particular com P7.

B4, encosta o imbecil ali na parede. Disse C9.

Sim, Senhor! Acatou B4.

Saindo da conversa particular, C9 caminhou até o lugar em que XXX estava sentado, com as costas escoradas na parede do galpão, com a cabeça abaixada entre os joelhos. Ainda tremia, embora já não suasse tanto.

C9, então, chegou-se mais perto, abaixou-se e disse com voz serena e cínica:

Então, quer dizer que você é “Doutor”? Doutor de quê mesmo? De História? Com especialidade em olhos, não é mesmo?! Acho que depois de hoje, você vai ter muita estória pra contar...

C9 falou isso com um sorriso assombroso entre os seus grandes dentes, que mais pareciam compor a mandíbula de um cavalo.

Vejamos: o P7 estava me falando ali que você é especialista em História da Punição e da Vigilância... Técnico em olhos, digamos. Mudando de tom, prosseguiu. Eu não entendo como alguém pode ser isto!... Vejamos seus olhos... Levanta a cabeça, seu imbecil! Analisou durante alguns segundos os olhos esbugalhados de XXX. Hum... Olhos negros. Grandes. Misteriosos... E essa barba nojenta? Ao falar de sua barba, deu-lhe um tapa de leve em sua face esquerda. Você não deve se olhar muito no espelho... Levanta a cabeça, seu merda! Desta vez o tapa na face foi mais forte. Nós bem que poderíamos fazer uma micro cirurgia em seus olhos agora... O que você acha? Olhava-o, neste momento, com olhos do mal. Perfurá-los lentamente... B4, me traz aquela agulha que está na carro. Acabo de ter uma excelente idéia!

Sim, Senhor! Respondeu B4, trazendo-lhe logo em seguida um pequeno objeto brilhante, que de fato era uma agulha.

Puxando um isqueiro do bolso direito da farda, C9 acendeu-o e levou a agulha até à chama.

B4, segura aqui a cabeça do Doutor em Olhos. Vejamos se ele conhece a Verdade mesmo...

B4 segurou a cabeça de XXX, enquanto P7 abria um de seus olhos, puxando fortemente sua pálpebra pelos cílios. C9 apagou o isqueiro, e direcionou a agulha avermelhada para o olho de XXX. Mirando diretamente no centro do glóbulo ocular, C9 encostou a agulha quente no olho de XXX, embora sem chegar de fato a perfurar. Apenas tocando-o levemente. XXX soltou um grito apavorado, estridente e 'assonhombroso'.

De pronto, C9 puxou de volta a agulha, e enfiou-lhe uma cotovelada em cheio no maxilar de XXX, que caiu de lado, chorando de dor.

Isso é pra você aprender a não dar uma de dono da Verdade, seu imbecil!

Chutando-lhe a costela, C9 iniciou um espancamento impiedoso e brutal contra o corpo de XXX. Após alguns minutos de pancadas, C9 arrastou aquele corpo moído até à viatura, jogando-o novamente na mala, dando-lhe um último soco no rosto sangrento de XXX.

Vamos embora! Ordenou C9.

Circularam com o carro por mais 5 minutos, e pararam em cima de uma ponte deserta e escura, que ligava a cidade ao porto.

Vamos ver se ele sabe nadar... Disse C9.

Saíram do carro, C9 e B4. Este último abriu a mala, e C9, que era muito forte, entornou XXX de costas, tirou-lhe as algemas, e arrastou-o até a beira da ponte.

"Doutor", eu espero do fundo da alma queo Senhor saiba nadar... Falou C9 para XXX.

Nesse momento, C9 levantou-o, e ferozmente arremessou aquele corpo espancado ao rio, que passava lá em baixo, uns 7 metros. O corpo caiu na água.

C9 acendeu um cigarro e tragou profundamente... Em seguida, virou-se, já caminhando para a viatura e disse para os outros:

Que tal um café com brôa?

23/04/2008

O... e ... Vôo de Alice



QUANDO ÀS 2 HORAS, 14 minutos e 30 segundos da madrugada, a faustosa e flutuante Alice – alvo constante da inveja de infelizes donzelas que habitavam o Castelo Urb, transmutada que estava em muriçoca – voando entrou pela janela de Tuta, não rumou outro sentido senão seu ouvido... A cada bater de asas, a cada instante, via-o maior e a cada milímetro que se aproximava mais acelerado batia o seu nervoso e ardente coração... Ela desejava sussurrar ao seu ouvido, passar as mãos em seus ombros, sentir o calor de sua pele e abraçá-lo, beijá-lo, amá-lo!

No entanto, eis que Alice – que há pouco se encontrava na serenidade de sua Torre no Castelo Urb a pentear suas melífluas madeixas castanhas que escorriam, agora, por sobre a estranha agulha que lhe culminava a face, ainda a se olhou... olhos nos olhos, num micronésimo de segundo que teve consigo mesma (e que logo voltaria a ter), quando de repente olhou-se novamente no espelho e deu-se por si como uma mosquita horrenda!. aterrorizou-se com aquele monstruoso reflexo que vislumbrou e saiu do Castelo ensandecida sem nem saber como nem porque, só voou... – lembra-se num estalar de dedos da terrível imagem produzida no espelho por sua nova forma. Ela, que no instante mágico lembra-se muriçoca, desvia o rumo com medo de assustar o seu grande amor.

Seguindo, então, o lado errado ou certo do vôo, passa em frente aos distraídos olhos de Tuta – Alice, que vivia a natureza das muriçocas e entrara por acaso, com outras tantas, na primeira janela que encontrou quando uma tempestade começara a despencar do céu, não esperava vê-lo naquele momento tão singular e ultra-humano que experimentava; quando o viu, a paixão domou-a com suas turbas apocalípticas e lha verteu em direção ao ouvido esquerdo de seu atemporal amor... Entretanto, resignando-se repentinamente, temerosa de chocar o homem que um dia a faria a mulher (ou mosquita?) mais feliz do mundo, mudou a direção do vôo – que automaticamente largou seu violão e todos os planos que lhe permeavam a mente às 2 horas 14 minutos e 32 segundos e bateu palma para Alice que caiu morta.

O homem que pedia

ANDANDO PELA RUA, Matos procurava emprego. Arrumado à boa aparência, ele pegava um ônibus e se ia para o calor do Centro da Cidade achar um serviço – o qual, não sabia. Mas ia. O que aparecesse pegaria. Todos os dias, Matos ia. E, todos os dias, passando pela Praça do Derby, cruzava o pedágio para adentrar nas ruas sagradas do Centro. Pagava seu Sagrado compulsório passaporte de entrada (sem saber por quê...) e se ia Matos. Passara-se quase duas semanas e não arrumara emprego. Arranjou um serviço de uma tarde certa vez, mas só lhe deu trabalho – lucro nenhum. O que piorava sua situação era a repetição cotidiana do rosto do cidadão fardado que trabalhava no Pedágio do Derby (do qual tanto comentavam na sua cidade!) olhando imperativamente para Matos, que sacava a carteira e lhe pagava os três reais de entrada, e, ia procurar trabalho andando. No penúltimo dia para completar duas semanas que se jogava ao Centro da Cidade, Matos, no momento em que entregava o dinheiro do pedágio nas mãos do cidadão fardado, puxou de volta sua mão para si, com o dinheiro em punho, e perguntou-lhe: “Haveria por algum acaso algum trabalho para mim?”, ao que lhe respondeu o cidadão fardado: “Por acaso me perguntaste isto antes? Este emprego é seu desde o primeiro dia. Eu não havia lhe dito?” E, entregando-lhe em mãos uma farda semelhante à sua, apenas mais envelhecida, apontou-lhe uma cabine igual à sua ao longe à direita, dizendo-lhe: “Eis a tua cabine ao largo, onde assumirás teu posto de Pedinte-em-experiência do Estado Público. Há muito serviço para nós. Há também um abrigo, caso precises, com sopa rala à noite e bolacha no café. Tenha um bom dia.”

18/04/2008

A nossa decadência poética

No Recife não há mais poesia.

Estagnou-se no passado o dia

Em que a cidade era palco

Do mais nobre salto

Dos poetas serelepes.


No Recife não há problemas.

É, em si, todo problema.

No Recife os poetas de hoje em dia

São, em sua grande maioria,

Marginais,

Ou acrobatas de sinais.


Não há mais verbo,

Há apenas corpo,

Em um corpo todo doente.

Sim, o Recife está carente;


O Recife é um delinqüente

Entorpecido de cola.

Antigamente era uma escola

Hoje é decadente.

16/04/2008

Carta a um interlocutor invisível

Prezado,

concordo que existe um "jogo político" na mídia atual, não tenho muitas objeções a lhe fazer quanto a isso.

Minha objeção é quanto a essa "dominação" a que você faz menção, em sua perspectiva histórica. Mas, essa é uma discussão que foge um pouco do tema. No entanto, vamos lá, apenas para prestar alguns esclarecimentos prévios.

Não acredito que a tal "subserviência" que você menciona seja indiscutível. Acho sim que é bastante discutível, inclusive.

Digo isso pelo seguinte: essa perspectiva Dominados X Dominantes, é uma perspectiva oriunda do marxismo e seus braços. Ou seja, é uma perspectiva datada historicamente, e bastante recente por sinal.

Não quero dizer que não houve contestações populares ao longo da História da humanidade. Seria um contrasenso dizer isso.

Apenas acredito que, em muitos processos e épocas históricas, o "povo" era quem legitimava a existência de um poder vertical.

Vou lhe dar um exemplo histórico, para não ficarmos orbitando.

Na época das monarquias absolutistas, na França (séculos XVII e XVIII, principalmente), existia um dispositivo de poder que era o seguinte:

as chamadas "Lettre de Cachet", que eram simplesmente as petições de prisão na Monarquia Absolutista.

Ora, muitas dessas ordens de prisão provinham do povo (quando não sabiam escrever, o que era comum, contratavam um escrivão), que se dirigiam ao poder Absoluto da monarquia. Era como se as "pessoas comuns" tomassem para si, em proveito próprio, os mecanismos de poder do Estado, compreendes?

Explico melhor: nas querelas entre familiares, vizinhos, ou seja, na vida cotidiana das pessoas, algumas redigiam petições de ordens de prisão ao monarca, solicitando deste que se utilizasse de "Seu" poder para excluir da sociedade indivíduos que representassem algum tipo de mal.

Vou transcrever um trecho uma dessas cartas, de uma mulher abandonada, solicitando a prisão de seu marido:

"(...) que talvez nada tenham a esperar de seu pai senão um exemplo terrível dos efeitos da desordem. Sua Justiça, Sire, lhes poupará de uma aviltante instrução, a mim, à minha família o opróbrio e a infâmia, e colocará fora do estado de fazer qualquer dano à sociedade um mau cidadão que não pode senão causar-lhe dano."

Isto quer dizer que a tal "Soberania" política, efeito de uma tal "subserviência" se coloca dessa forma no nível mais elementar do corpo social. De baixo. Entre os súditos, entre os servos, entre os que são "subservientes".

Meu caro, com isso quero apenas ilustrar meu pensamento. Não acredito em "inocência" do povo.

Está claro neste exemplo que dei, de como as "pessoas comuns" tomam para si um poder institucional e vertical quando lhes convém. Teriam outros exemplos, mas, para não me estender demais (já me estendi, por sinal!), ficarei só nele, ao menos por enquanto...

Quero dizer, em suma, que não acredito nessa "subserviência", pois acho que os dispositivos de poder atravessam a sociedade em todos os sentidos, de cima para baixo, de baixo para cima, de um lado para o outro, se apropriando quem quer que seja de todos os mecanismos disponíveis na hora em que estes lhes convém.

Até breve!

10/04/2008

Reflexões acerca de Nada

Escrever sobre NADA é um enorme problema. Escrever NADA também. Uma série de dificuldades pode ser imposta a um texto que se aventure nesse tema.

A palavra NADA por si mesma já constitui um problema. O que é NADA? Além de uma palavra, o que é NADA? Significaria COISA NENHUMA? Significaria a antítese de TUDO? Mas, antítese de quê: de outra palavra que talvez signifique menos que NADA?

Não há como pensar NADA sem pensar sobre TUDO. E, por sua vez, é possível pensar sobre TUDO? Não seria tudo um ente vazio, uma metáfora? Neste sentido, NADA também seria uma metáfora. Mas, metáfora de quê? Como falar de COISA NENHUMA se para isso também deve-se levar em conta TUDO? A totalidade é possível, ou ela não passa de uma metáfora? Se for uma metáfora, isto equivaleria dizer que todo pensamento moderno, iluminista, positivista, e todos os seus implicativos, não passariam de uma metáfora, ou seja, que 400 anos de História foram atirados ao léu, em busca de uma “verdade metafórica”? isso, decerto, causa risos.

Seria então, o pensamento moderno uma mera ironia? Será que TUDO o que sempre se buscou, foi a materialidade de uma metáfora (TUDO/NADA)? Ou buscou-se (busca-se?!) a metaforização de uma matéria vazia?

Kant teria sido um grande teatrólogo? O Shakespeare iluminista? E Shakespeare teria sido o quê? Um zombeteiro ou um grego? Hegel passou tanto tempo perdendo-se nos confins de um pensamento inócuo? Há NADA, fenomenologicamente pensando? NADA seria um fenômeno da linguagem, ou mero devaneio? Ou nem um nem outro? E a apreensão de NADA (TUDO) será possível? Mas, aprensão de quê? De uma metáfora? Sim, quando se pensa que um Homem é forte como um touro, decerto isso não é uma metáfora. Um Homem realmente é mais forte que um touro. Mas, não se pode esquecer que os fracos são fortes justamente por serem fracos. A fraqueza é uma força. Ou, se não, como é que a moral cristã se firmou (?) no espírito tão diligente do Homem ocidental? Homem? Ocidental? Isso é TUDO? Ser “Humano”, ou “Ocidental? Não seriam também os ratos Orientais (sem metáforas) Homens ocidentais? E as pulgas! Ah! As pulgas... Essas sim não são meras metáforas. Quando os carrapatos (“super-pulgas”) espreitam seus alvos, e se jogam em busca do sangue de seus companheiros, decerto elas fundamentam uma linguagem que não é nem de longe metafórica. Em suma, o Homem é um “bicho” (se é que ele é capaz de constituir-se em bicho) metafórico, logo, HOMEM não existe.

Se HOMEM não existe, sendo ele um ser metafórico (e visto que as metáforas devem ser aniquiladas, pois que não versam sobre NADA) fenomenologicamente ele seria NADA? Caso a resposta seja positiva, isso significa dizer que o HOMEM deve ser aniquilado (lembrando, sem metáforas!)? caso seja negativa, o HOMEM deve ser aniquilado?

Qual o lado, então, que devemos ficar? Não existe lado. Se TUDO é NADA e vice-versa, então o HOMEM metafórico deve ser aniquilado.

Abolir as metáforas não é um princípio, pois. É uma fenomenologia que se esgota em si mesma. Assim, o HOMEM deve ser eliminado. Para quê? Talvez a pergunta seja mais bem formulada da seguinte forma: e porquê não?

Eliminar o HOMEM não é uma metáfora, nem muito menos um desejo revolucionário, nem tampouco niilismo. É um fato.

Em uma palavra, para sermos de fato HOMENS, devemos nos eliminar enquanto tais: apenas dessa forma superaremos as pulgas.

09/04/2008

Picasso: uma dinamite na arte do século XX

Hoje (08) fazem 35 anos da morte do pintor espanhol Pablo Picasso. Nascido em 25 de outubro de 1881, veio a falecer em 8 de abril de 1973.

Clique aqui se quiserem ler uma breve biografia de Picasso.

Antes de inaugurar o modelo estético cubista com sua tela “As senhoritas de Avignon”, Pablo Picasso já havia produzido obras significativas (não apenas pinturas, como também esculturas) em um período que foi denominado de fase azul e fase rosa, nas quais utilizava-se de elementos maneiristas, além da influência visível da estética das cores de Van Gogh.

No ano de 1907, Picasso pintou uma das telas mais inovadores da época, intitulada Demoiselles d’Avignon –- As Senhoritas de Avignon. A composição desta tela não apresenta unidade, seus personagens não trazem relevos definidos, é composta de linhas, ângulos e planos imbricados, em uma palavra, é torpe (no bom sentido!).

“Uma criança pintaria este quadro!” Disse-me alguém, certa vez, argumentando que as formas não são bem delineadas e que as figuras que compõem a obra estão em situações de perspectiva equivocada. “Há algo errado neste quadro…”

Ora, nunca ninguém me disse isso,– ainda bem! Sim: há algo errado neste quadro. E, isto é ótimo!

A intenção de Picasso, talvez, tenha sido justamente romper com certos padrões fixados na arte da pintura, até então. Mas, essa ruptura não se fez sob a égide do desprezo ao que veio antes, pelo contrário, podemos dizer que Picasso produziu arte em padrões clássicos: pintura, escultura, gravura, cerâmica.

Seria, por outro lado, muita ingenuidade de nossa parte, acreditar que a “ruptura” provocada por Picasso, a partir desta tela, não teria tido nenhum precedente. Décadas antes, Paul Cézanne e Vincent Van Gogh (se recuarmos mais, Delacroix e Goya) já haviam provocado algum tipo de “mal-estar” nos padrões estéticos vigentes.

Os valores estéticos que Picasso agrega na tela (As Senhoritas de Avignon) são fundamentais para tudo o que se produziu nas artes plásticas posteriormente.

É com esta obra que Picasso inaugura o que se convencionou chamar de Cubismo. (clique aqui para saber mais sobre o cubismo)

Imagine uma cabeça humana. As cabeças humanas são circulares, com as orelhas estando dispostas uma de cada lado da cabeça (isso dentro dos padrões da normalidade humana…). Agora suponha que se abra esta cabeça como uma folha de papel, depositando-a sobre uma superfície horizontal. Estranhamente as orelhas e demais partes não estarão mais opostas, mas paralelas.

Essa é a lógica básica do cubismo, assim como eu o compreendo.

A partir da dissolução do grupo cubista, no ano de 1914 (quando do início da 1º Grande Guerra), Picasso iniciará uma fase de eternas transformações. Sua arte provocará travessias em diversos planos. Sua obra “Guernica” é um exemplo de aguda criação crítica.

Nesta obra, Picasso produz imagens atrozes dos efeitos torpes do bombardeio alemão ao pequeno vilarejo de Guernica, no país Basco, Espanha, quando da Guerra Civil espanhola, na década de 1930.

Na tela acima, “Mulher chorando com lenço” (também de 1937), Picasso retoma parte dos esboços feitos para Guernica, ampliando os traços (feitos à margem inferior esquerda) de uma mãe que carrega seu filho morto nos braços. Envolta em luto e dor, a mulher agora está sozinha.

O rosto fragmentado, distorcido e atormentado é realçado pelas cores berrantes. “As cores estão para um pintor assim como os conceitos estão para os filósofos“, diria Guilles Deleuze.

Curioso (se olharmos mais atentamente) é que os dedos da mulher tornam-se o próprio lenço, sendo mordido desesperadamente pela mãe, numa simbiose que representa (segundo uma das interpretações possíveis) a tristeza, a dor da perda de um ente querido em um mundo atroz e cruel.

No dizer de Alberto Beuttenmüller:

“Picasso é o artista do devir e o que está passando, a um só tempo, do hoje e do arcaico, o artista que mudou tudo para que tudo restasse no mesmo lugar. O artista veloz que se permite ser do século XX e de todos os séculos, sem deixar de ser do agora. Picasso foi um movimento que se fez pintura, mais que todas as escolas do século XX; foi e é o pintor-tempo.”

Para visitar o site do Museu Picasso de Barcelona, clique aqui.

Para visitar o site do Museu Picasso de Paris, clique aqui.

Para os interessados em estudar mais fundo a relação entre Memória, Imagem e Educação, leiam o artigo “Imagens e Memória na (re)construção do conhecimento", de Áurea Maria Guimarães.

08/04/2008

Frida Kahlo: palavra e imagem em uma obra fascinante

A pintora mexicana, Frida Kahlo, se viva estivesse, seria hoje uma senhora de mais de 100 anos de idade. Nascida em 6 de julho de 1907, a pintora faleceu aos 47 anos, no dia 13 de julho de 1954.

Artista cuja existência foi permeada por episódios trágicos, sua obra é marcada pela expressividade soberana de uma arte sagaz sob uma estética surrealista.

Frida revela em suas telas o grito surdo de sua dor ante as adversidades de sua vida e seus descaminhos amorosos ao lado do muralista Diego Rivera.


Frida abre as portas de seus traumas ao público, expondo seu débil corpo em representações profundas e chocantes.

A Coluna Quebrada


Sua obra e vida nos permite olhares diversos.

Nascida em meio à Revolução Mexicana, com raízes em dois universos distintos - filha de um judeu austro-húngaro e de uma descendente indígena mexicana -, Frida revela em sua obra condições históricas conturbadas, refinamento estético e um misticismo marcado pela sua relação com a morte e com a dor.

"Duas Fridas"


Frida foi uma mulher partida ao meio, fraturada, rasgada, fragmentada pela sua conflituosa existência. No entanto, resistente e surpreendente.

Contemplar sua obra é uma zona de atritos: difícil não sofrer efeitos estético-político-filosóficos ao observar suas telas.

Um olhar estético possível sobre sua arte nos remete à análise do filósofo, historiador e epistemólogo francês Michel Foucault, do quadro de René Magrite, Isto não é um Cachimbo.

Isto não é um Cachimbo - René Magrite


O texto de Foucault (cujo título é o mesmo da tela de Magrite) analisa o uso conjugado da palavra e da imagem. É como um caligrama (textos cujos caracteres compõem uma figura relacionada com a mensagem que se quer expressar), onde a palavra escrita reforça a imagem e a imagem reforça a palavra escrita em uma espécie de exercício de tautologia, no qual imagem e palavra reforçam um mesmo conceito.

Auto retrato com cabelo cortado


Esta pintura marca um grito de libertação de Frida, assolada pela dor do adultério de seu marido com sua irmã, Cristina. Ao negar-se os atributos femininos que Rivera tanto apreciava (as vestes tehuanas e seus longos cabelos), ela se afirma enquanto uma pessoa livre. Seus cabelos espalhados pelo chão são um retrato da desordem de sua própria alma, picotada pela dor de ver sua irmã e seu marido juntos.


A misteriosa imagem de Frida nesta tela, reforçada pelo mistério das palavras é inspiração em estado bruto; é a expressão do intangível e o aval para um olhar multiplamente agregador de sentidos, o que confere à sua obra uma condição ontologicamente de Arte.

A obra de Frida é um convite ao pensamento. Sua verve inebriante é transmitida em calafrios aos olhares que vislumbram suas telas.

Frida não foi só uma artista, ou uma mulher. Foi um acontecimento à parte no século XX. Um meio-dia e um profundo esgar da alma.

O Amor abraça o Universo


Caso queiram ler o interessante texto de Rachel Sztajnberg sobre Frida Kahlo, cliquem aqui.

Sugestões de leitura:

- Frida Kahlo, la pintora y el Mito, de Teresa del Conde;

- O diário de Frida Kahlo: Um Auto-Retrato Íntimo, de Frida Kahlo;

- Isto não é um Cachimbo, Michel Foucault.

O desdém de quem é desdenhado


Ao lado da parada de ônibus, uma família (1 mulher e 4 crianças, sendo 1 menino e 3 meninas) descansava de seu almoço, cujos restos repousavam espalhados no chão, rejeitados pelo cão que dormia.

Eu olhava para as pessoas que não olhavam para aquela cena deprimente, ou olhavam com olhares oblíquos de desprezo.

Chegara meu ônibus, que esperei por cerca de 25 minutos. Pedi parada e lancei o último olhar para a mulher adulta, espalhada na calçada, em meio aos restos de comida e aos seus filhos (suponho que sejam seus filhos).

Paguei a passagem e sentei-me na primeira poltrona após a catraca, do lado oposto ao cobrador. Como não havia nada para fazer durante minha viagem, que demoraria cerca de 45 minutos, caso o trânsito ajudasse, puxei o livro “A Gaia Ciência”, de Nietzsche, que estou relendo no momento. Abri na página 126, aforismo 100...

Aprendendo a homenagear” é o título do aforismo. Corri os olhos pela primeira frase. Neste instante uma criança de seus 8 anos, com aparência de 13, passou entregando papeizinhos para os passageiros do ônibus.

O papelzinho dizia: “"tenho 6 irmão, minha mãe está doente, meu pai dezempregado. Pesso ajuda para comer. Obrigadu."”

Li o papelzinho e pensei: “"Não vou dar esmola para essa criança.”" Lembrei que tinha guardado um pacote de biscoito na mochila, tirei e lhe dei. Ele olhou com certo desdém, e me disse: “Valeu!”

O menino saiu coletando as indulgências de outros passageiros e eu retornei para o aforismo 100, pág. 126, que dizia na primeira frase: “É preciso aprender a homenagear, tanto quanto desprezar. Todo aquele que segue novos caminhos, e que conduziu muitos por novos caminhos, descobre assombrado como esses muitos são pobres e canhestros ao exprimir sua gratidão, e mesmo como é raro a gratidão poder se expressar.”

Refleti: “Caramba, isso tem a ver com tudo isso.” Continuei lendo: “É como se, querendo falar, algo sempre lhe incomodasse a garganta…” O motorista então deu uma freiada brusca, que quase chega a lançar uma mulher no chão. Olhei de lado para a situação incômoda, e retornei às pressas para minha leitura: “… a garganta, de forma que ela apenas pigarreia e silencia com o pigarro.”

Logo em seguida, outro pedinte entrou no ônibus. Desta vez, um homem, de cerca de 55 anos. Parou ao meu lado e entoou em voz alta: “Pessoal, estou aqui me humilhando para vocês. Nunca pensei que fosse ter de fazer isso. Mas, aqui estou. Peço que, quem puder me ajudar, me dê qualquer trocado, que Deus lhe dará em dobro.”

Eu, que não costumo dar esmolas, e já não tinha biscoito, resignei-me e voltei-me para a minha leitura, enquanto o homem recolhia algumas indulgências. Passei as páginas com a vista distraída, mais que com a mente atenta; folheei o livro, cansei de ler e o guardei novamente na bolsa. Já se haviam passado os 45 minutos da viagem, e eu já estava perto de meu destino.

Olhei para trás, e o ônibus ainda estava cheio. De repente, um garoto subiu ao ônibus tocando um triângulo barulhento e infernal, com sua voz estridente, e começou a cantar um forró, desses que tocam nas rádios comerciais.

Depois de alguns poucos minutos, o garoto disse em voz ainda mais estridente e ritmo encadeado: “Eu poderia estar roubando, poderia estar matando, poderia estar cheirando cola; mas estou aqui, tocando música, e peço a vocês uma ajudinha para eu comer. Agradeço desde já. Quem não puder me dar nada, que não dê! Eu agradeço. Uma boa viagem para todos!”

Novamente, não paguei o ilustre músico por sua atuação magistral. Mas, muitos deram a ele a pedida ajuda. Levantei para descer do ônibus, puxei a cordinha e fiquei lembrando as palavras sábias do garoto, que pareceu já haver lido Nietzsche bem mais que eu: “Quem não puder me dar nada, que não dê!”

Essa frase me soou como uma grande homenagem do garoto-artista ao filósofo alemão, que fala da beleza rara que mora em cada desdém. Uma homenagem sem flores, sem formalidades; uma homenagem do corpo que vive a sua própria obra.

Escrever também é um remédio

O estilo é a fisionomia do espírito. E ela é menos enganosa do que a do corpo. Imitar o estilo alheio significa usar uma máscara.”

Vrummm… Queixas, queixas, queixas…

“Minha filha, vá tomar um banho”, queixou-se da filha a mãe ao telefone.

Por mais que esta seja, torna-se pouco depois insípida e insuportável porque não tem vida…”

Vrummm… Queixas, queixas… Queixas as mais diversas dos passageiros do coletivo que circulava nas ruas do Recife, e acabava de “queimar” mais uma parada de ônibus. O motorista estava enlouquecido e o cobrador sorria…

“Minha filha, o que você tem é estress… Olhe, relaxe! Eu estou no Derby ainda, e não posso sair voando!” Mudou o tom de sua voz a mãe que tentava acalmar a filha pelo telefone, na poltrona ao lado da minha.

Eu sentado, lia em silêncio a obra do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, A Arte de Escrever, e, em alguns momentos era interpelado pela conversa da mãe com sua filha, e pelas arrancadas bruscas do motorista do ônibus e os risos sarcásticos de canto de boca do cobrador, que olhava para os passageiros como que pensando: “Vocês não estão gostando? Pois eu estou me divertindo muito! Acelera, motô!”.

Continuei minha leitura, “… porque não tem vida, de modo que mesmo o rosto vivo mais feio é melhor do que ela. Assim, quando os autores escrevem em latim e imitam o estilo dos antigos, é como se usassem máscaras…”

“Menina, se acalma, vá! Olhe: tome um banho, jogue uma água fria na cabeça, e deite para descansar que eu chego já, já.”

O motorista, após algumas queixas de um passageiro que gritou “Motorista, tu num tá carregando gado não, visse?!”, de forma surpreendente desacelerou o ônibus, e foi desta vez lento até demais, como que querendo provocar.

A mãe ao telefone, na poltrona do meu lado, por sua vez, interrompeu a conversação com sua filha, fazendo uma cara muito feia, falou: “Motorista, acelera essa coisa!”

Voltei à minha leitura, pág. 79, Capítulo 3º, Sobre o Estilo e a Escrita: “A afetação no estilo é comparável às caretas que deformam o rosto.

Agora, a mãe engrossou a voz ao telefone: “Olha, menina: você só tem 18 anos, e, eu não posso te criar na base de remédios para dormir, está me ouvindo? Vá tomar um banho, que eu chego já, já!”

Brumm…O motorista novamente voltou a acelerar. Um passageiro se levantou e pediu parada, ao que saiu andando e reclamando: “esse motorista é um palhaço… E, olha a cara desse cobrador, deve ser outro palhaço, deveriam estar em um circo… Blá, blá, blá…” Desceu as escadas reclamando, e talvez esteja se queixando até agora.

Devemos descobrir os erros estilísticos nos escritos dos outros para evitá-los nos nossos.” Disse-me, Schopenhauer.

A mãe, neste instante, acalmou sua voz ao telefone, e, falando mansinho, perguntou à filha: “Como foi a novela hoje? Ah, não assistiu? E o BBB, foi legal? Fulano beijou ciclana? Poxa, você não viu também?”

Fechei o livro. Olhei para os olhos da mãe da filha, ela falava sobre o Big Brother Brasil. Fiquei pensando: “Caramba, essa mãe deve estar passando muitas dificuldades com sua filha, que deve estar vivendo alguns distúrbios psicológicos.”

Guardei meu livro na bolsa, estava próximo da minha parada de descida. Lancei um último olhar para a mãe, que expressava em sua rostidade um melancólico ar de desespero controlado, trasmitido pelo seu “sorriso sem graça”.

Percebi que, com todas as suas forças, aquela mãe lutava desesperada para tranqüilizar sua filha, pelo telefone, falando sobre a novela e sobre o BBB, ao mesmo tempo em que lhe proibia de tomar remédios para dormir.

Não seriam as novelas e o BBB, também remédios para dormir? Dormir um sono dogmático ante o desespero da vida? O desespero inato e irrevogável de toda vida de quem vive em nossa sociedade, com o mínimo de visão além do próprio umbigo?

Levantei, puxei a cordinha do ônibus, e desci. Caminhei até minha casa, olhei para a TV, erguida na sala qual um altar dos antigos babilônios… Onipotente…

Dei de ombros, tomei um banho e, nesta noite, não consegui dormir direito; tive insônia.

Liguei meu computador e pus-me a escrever esta crônica, que é um reflexo impuro de todo desespero único e precioso da vida. Da vida que não vive e nem é vivida sem um pouco de desespero.