30/07/2008

Um passeio de formiga em gaiola-urbana

Escrever. Escrever. Escrever. Cotidianamente, escrever. Sobre o quê? Discutir os grandes temas? Mas, os grandes temas, por vezes, são tão pequenos. Tão insignificantes. Pois que hoje os pequenos temas sejam grandes!

É, escrever é um gesto que por vezes é sublime. Em outras vezes pode ser um fiasco. Muito disso envolve a questão temática sob a qual o escritor se debruça. Afinidade, desejo e conhecimento de causa certamente influenciam deveras nos resultados finais desse gesto: o ato fatídico da escrita.

Na tarde de ontem, andei durante horas no centro da cidade do Recife. O motivo? Coisas burocráticas - menores. Não importa. Mas, caminhei, ou melhor, caminhei não, andei mesmo. Pra lá e pra cá, como uma formiga que carrega seus grãos de acúcar à procura cega da tanajura perdida. Digo formiga pois essa foi a sensação que tive ontem. Senti-me, de fato, uma formiga.

Enquanto caminhava, digo, andava, eu olhava para o rosto daquelas milhares de pessoas que passavam por mim com ar preocupado, outras nem tanto, e eu pensava: “Porra, como é difícil estar só no meio de uma multidão como essa!”

Mas, essa sensação de solidão-na-multidão pode também não ser tão ruim. Sentia-me alheio àquelas tantas vidas. Sentia-me eu-alheio - por isso, mais leve...

Um passante invisível. Um mero passante que flutua e observa. Nada mais. E, como isso me pareceu um alívio! Era como se eu não tivesse nada a ver com aquelas vidas. Mas tenho, inevitavelmente. Não a ligação intrínseca que os laços consangüíneos nos impõem. Mas, uma ligação invisível. Um insólito elo - como a mão que toca outra em pensamento... como a mão que acarinha um rosto em devaneio. Compartilhamos a mesma miséria humana, a mesma poética suja e bela, em nossos centros urbanos. Todos compartilhamos belezas, agruras, poesia e um certo instinto de rebanho. Andamos em direção… Andamos sem nos ver, sem nos tocar, sem nos sentir. Andamos... Por acaso, ou ventura, uma ou outra vez tocamos nossas “antenas de formigas”, e mais nada. Há possibilidades de um devir-encontro, mas é raríssimo.

É como se vivêssemos em mundos paralelos. Em cidades diferentes. Em diferentes cidades invisíveis. Como se o Recife fosse uma cidade-caixa, dentro de uma outra infinidade de cidades-caixa. Talvez João Cabral de Melo Neto tenha captado através da imagem da mulher, a própria imagem da cidade que vivenciei ontem. Em seu poema "Mulher Vestida de Gaiola", João Cabral enuncia:

“(…) E assim como tu resides / nessa gaiola, cingida, / o vasto espaço que sobra / de tua gaiola-ilha // é como outra gaiola / igual que o mar: sem medida / e aberto em todos os lados / (menos no que te limita). // Pois nessa gaiola externa / onde tudo tem cabida, / onde cabe Pernambuco / e o resto da geografia, / / três bilhões de humanidade / e até canaviais de usina / sei que se debate um pássaro / que a acha pequena ainda. (…)”

E, eu pensava: “É provável que Recife seja uma gaiola. Ou melhor, uma ‘mulher vestida de gaiola’. Ou não. Que importa?! Recife oode ser mesmo é uma fruta. Sim, uma fruta trespassada por uma espada chamada Rio Capibaribe (peço de novo licença de me ilustrar as impressões com uma imagem de João Cabral). Uma espada-cão - embora, sem plumas.

Acontece que eu andei, andei, andei, e não consegui resolver meus impasses com a burocracia. Por um acaso (?) encontrei uma amiga muito querida, quando entrei, guiado pelo inconsciente, em uma rua que nem sequer estava em meu itinerário - mas, eu, em meu estado de formiga-presa em uma gaiola-caixa chamada Recife, andava, andava, andava, quase um autômato. E, como aquele encontro me fez bem! Cotidianamente falamos com muitas pessoas, por telefone, pela internet, mas poucas vezes nos encontramos.

Ao chegar em casa, eis que encontro o tal documento, após horas e horas procurando-o, e mais horas e horas andando. O documento sempre esteve lá. Mas, não encontrei de forma alguma - a não ser quando já nem esperava mais nada.

Dissipou-se nesse momento, como um abrir-de-caixas, cujas abas se desabrocham magicamente, permitindo-nos entrever seu conteúdo. Senti que precisava mesmo ter andado. Precisava ver na rostidade da multidão, seu retrato de formiga-engaiolada.

E, pra quê? Pra escrever, apenas - talvez... Pois escrever é um gesto, acima de tudo, um gesto. Como todo gesto, pode ser bem executado ou não. E, nossa escrita sempre irá refletir nossa alma, nosso estilo. O estilo, disse certa vez Schopenhauer, é a fisionomia do espírito.

Certamente, na maior parte dos casos, sinto-me insatisfeito com meus textos. Em outras não. A variação de humor e estados-de-espírito sempre estão impressos nas letras coladas na tela - ou no papel - como se afixam sombras negras nos papéis de cópias mau tiradas.

19/07/2008

Afterglow

o ocaso é sempre comovente
por mais pobre ou berrante que seja,
porém mais comovente ainda
é o fulgor desesperado e final
que enferruja a planície
quando o último sol mergulhou.
é doloroso manter essa luz tensa e diversa,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e cessa de repente
quando notamos sua falsidade,
como cessam os sonhos
quando sabemos que sonhamos.


Pedaço de "Fervor de Buenos Aires" - Borges, J. L.

Telemarketing

- Alô? Ah... Tudo bom?
- ...
- É que eu quero cancelar esta linha de telefone.
– O nome do senhor? Seu número de telefone ? Identidade? CPF?
– Ãn... talvez... acho que...
– Qual o motivo da sua decisão?
– Ãn... talvez... acho que não tenho motivos.
- Sr., qual o motivo da sua decisão?
- Olha, moça, eu não tenho motivos.
- Isso não é um "motivo", Sr.!
- Eu sei, mas é que... A senhorita é casada? Filhos? Namorado?!
- Sr., isso não vem ao caso.
- Caso. Mas é que...
- Sr., qual o seu motivo?
- Eu não tenho motivos.
- Então, Sr., tenha uma boa tarde, seu telefone não poderá ser cancelado.
- Mas, senhorita, o telefone é meu e eu não o quero mais!
- Por qual motivo o Sr. não o quer mais?
- Não tenho motivo!
- Então, Sr., tenha uma boa tarde, seu telefone não poderá ser cancelado.
- Mas, que merda! Eu tenho um motivo pra você: minha vida é uma bosta.
- Sr., isso não é um motivo para cancelar seu telefone.
- Mas, o telefone é meu.
- Da nossa operadora, Sr.
- Ok, o telefone é dessa droga de operadora, mas o motivo é meu!
- Qual motivo, Sr.?
- A MINHA VIDA É UMA MERDA!!!
- Sr., isso não é um motivo para cancelar seu telefone.
- Certo, certo, a senhorita venceu. Vou lhe dar um bom motivo, ok?
- Aguardo ansiosamente.
- Eu não quero mais esse telefone. Pronto, esse é o motivo...
- Sr., esse motivo não está registrado em nosso sistema. Não será possível cancelar seu telefone.
- E, quais motivos estão no "nosso" sistema?
- Vejamos: viagem; descontentamento com serviços; mudança de operadora; perda de emprego...
- Isso! Isso! isso! tenho todos esses motivos!
- O Sr. não pode ter todos esses motivos. É preciso escolher um, apenas.
- Sério? Hum... Tudo bem, tudo bem! Deixa-me ver. Inclua um novo motivo no "nosso" sistema.
- Qual?
- Tráfico.
- Tráfico?
- Sim. Tráfico. A senhorita ouviu muito bem! Não se faça de sonsa...
- Mas, Sr., esse não é um motivo plausível. Não será possível incluí-lo em nosso sistema.
- E por qual motivo não será possível incluí-lo em "nosso" sistema?
- Sr., não há um motivo definido, mas... Simplesmente não é possível. O sistema não aceita esse motivo.
- E, por qual motivo?
- Não há um motivo.
- Está vendo, senhorita? Não há motivos.
- Ér... Sr., estou perdendo meu tempo...
- Seu tempo?
- Sim. Meu tempo.
- Quanto tempo você tem?
- Ér... Não sei.
- Está vendo? Não se perde coisas que não se sabe que tem.
- Mas, Sr., isso está me deixando confusa...
- É? Que ótimo, esse é o meu motivo.
- Qual motivo?
- Deixá-la confusa.
- Como assim?
- Como assim o quê?
- Como assim "Me deixar confusa"?
- Assim mesmo, ora!
- Assim, como?
- A senhorita tem um motivo?
- Para quê o Sr. quer um motivo?
- Ora essa! A senhorita quem me disse que eu precisava de um motivo!
- Sim. E, qual o seu motivo?
- Não tenho motivo.
- Mas, é preciso ter um.
- E se eu não tiver, como ficamos?
- Não ficamos.
- E, por que não ficamos?
- Sr., eu sou casada!
- Hum... que pena. Era o único motivo de eu estar aqui paquerando a senhorita. Tenha um bom dia!
- ...

Pelos recantos mais profundos da alma

“Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que abandone tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?”

Pedaço da 1º das "Cartas a um Jovem Poeta" - Rainer Maria Rilke

02/07/2008

Poesia fractal

Tarde. Bem cedo. Logo cedo aos teus murmúrios.
Rios de muros molhados que marejam cedo ou tarde!
Arde. Como arde o andor de coisas velhacas.
Dói. Como cura a mais pura vivência exata: incerta!
Deserta: ainda que tarde arda, anda à espreita nos silenciosos calabouços de nós mesmos.
À esmo. Perdida é que ela se encontra nas mais recônditas sonatas sonolentas.
Lentas, mentem às agruras e aos montes as sementes de porvir.
Devir deve ser e é sempre um mistério anunciado.

Agora é noite. Ela baila suave e mente. agora é tarde e Ela tarda a sair-da-mente
foge como que escapulidamente: sairdamente.
E torna e retorna em sua dança inimaginável.
Ela não é uma borboleta. ela nem é - nem sendo.

Vendo um núcleo de universo à 30 cents. 30 centímetros
de sendas - e não vejo nada, e é istonada: e todo infinito nada mais é que

e o universo está descrito e explicado. , e fatalmente se aproxima do infinito

01/07/2008

Armila: a Cidade das Ninfas

"Ignoro se Armila é dessa maneira por ser inacabada ou demolida, se por trás dela existe um feitiço ou um mero capricho. O fato é que não há paredes, nem telhados, nem pavimentos: não há nada que faça com que se pareça com uma cidade, exceto os encanamentos de água, que sobem verticalmente nos lugares em que deveria haver casas e ramificam-se onde deveria haver andares: uma floresta de tubos que terminam em torneiras, chuveiros, sifões, registros. A céu aberto, alvejam lavabos ou banheiras ou outras peças de mármore, como frutas tardias que permanecem penduradas nos galhos. Dir-se-ia que os encanadores concluíram o seu trabalho e foram embora antes da chegada dos pedreiros; ou então as suas instalações, indestrutíveis, haviam resistido a uma catástrofe, terremoto ou corrosão de cupins.

Abandonada antes ou depois de ser habitada, não se pode dizer que Armila seja deserta. A qualquer hora do dia, levantando os olhos através dos encanamentos, não é raro entrever uma ou mais jovens mulheres, esbeltas, de estatura não elevada, estendidas ao sol dentro das banheiras, arqueadas debaixo dos chuveiros suspensos no vazio, fazendo abluções, ou que se enxugam, ou que se perfumam, ou que penteiam os longos cabelos diante do espelho. Ao sol, brilham os filetes de água despejados pelos chuveiros, os jatos das torneiras, os jorros, os borrifos, a espuma nas esponjas.


A explicação a que cheguei é a seguinte: os cursos de água canalizados nos encanamentos de Armila ainda permanecem sob o domínio de ninfas e náiades. Habituadas a percorrer as veias subterrâneas, encontram facilidade em avançar pelo novo reino aquático, irromper nas fontes, descobrir novos espelhos, novos jogos, novas maneiras de desfrutar a água. Pode ser que a invasão delas tenha afastado os homens, ou pode ser que Armila tenha sido construída pelos homens como oferta para cativar a benevolência das ninfas ofendidas pela violação das águas. Seja como for, agora parecem contentes, essas moças: cantam de manhã."
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Pedaço de
As Cidades Invisíveis - Ítalo Calvino.

Máscaras insólitas: a afetação no estilo

O estilo é a fisionomia do espírito. E ela é menos enganosa do que a do corpo. Imitar o estilo alheio significa usar uma máscara.
Por mais que esta seja, torna-se pouco depois insípida e insuportável porque não tem vida, de modo que mesmo o rosto vivo mais feio é melhor do que ela.
Assim, quando os autores escrevem em latim e imitam o estilo dos antigos, é como se usassem máscaras.
A afetação no estilo é comparável às caretas que deformam o rosto. Devemos descobrir os erros estilísticos nos escritos dos outros para evitá-los nos nossos.”

Pedaço d'A Arte de Escrever, de Schopenhauer