19/12/2009

Corrente de ouro num bucho faminto de desejo

No Rio de Janeiro, uma dona-de-casa de 52 anos desejava tanto uma corrente de ouro, que a furtou de uma joalheria, engolindo-a. A notícia parece corriqueira. Poucas peripécias nos surpreendem nesse paraíso da rapina chamado Brasil.

Moacyr Scliar, dos melhores escritores brasileiros vivos, deu um ‘tratamento’ literário na notícia acima, e lhe concedeu outras dimensões, novas perspectivas. Relatado em forma de carta-depoimento pela acusada do furto, o caso abandona as dimensões meramente jornalísticas ou policiais do acontecimento, revelando as próprias limitações da linguagem jornalística (e o quanto carecemos de ir além), além de tocar nas profundidades da condição humana.

Adentra os meandros das corruptelas políticas, dos panetones de engodo, das imoralidades do dinheiro na cueca, e, para além disso, as configurações da má distribuição de renda no País, num platô da economia do desejo.

Tais proporções alcançadas por Scliar fogem das vulgaridades linguísticas de um tal “jornalismo profissional” a que estamos habituados; tal habituação também cinge o próprio hábito da leitura, do entendimento, trancafiado nas portas das delimitações de significados. Tais proporções se afastam dos nossos padrões de pressupostos morais (no sentido mesmo de justificar o absurdo do acontecimento), tangendo, não sem certa maestria, nuances dos escritos de Albert Camus – especialmente de O Estrangeiro, onde um assassínio é explicado pela luminosidade do sol na face, que ofusca a vista de um homem com uma arma em punho.

A narrativa abaixo revela não a purulência de uma alma criminosa. Revela as nossas sujeições à uma condição humana limitada por uma ordem jurídica e social que, ao mesmo tempo, pune com rigor moral e penal uma senhora que desejava uma corrente de ouro, e recalca-se às vistas grossas para o câncer da grande corrupção política.

Uma ordem que permite o indivíduo assistir com passividade os seguidos escândalos da política nacional, sem que o salte da alma a disposição impetuosa de levantar o traseiro da poltrona para fazer qualquer coisa que seja, no sentido da cidadania e da vigilância política.

Espera-se cerimoniosamente a hora da próxima novela, ou da próxima Copa do Mundo…

“A corrente da vida”

por Moacyr Scliar
para a Folha de S.Paulo

Mulher é presa após engolir corrente de ouro em joalheria. Uma dona-de-casa de 52 anos foi presa após engolir uma corrente de ouro numa joalheria do centro do Rio. Ela foi indiciada por tentativa de furto. Uma radiografia confirmou que a corrente está em seu estômago. Quando expelir a peça, a mulher será encaminhada à cadeia. Segundo a polícia, Fátima Carceiro foi a uma joalheria e pediu para ver joias. Enquanto tirava peças da vitrine, o vendedor percebeu o sumiço de uma corrente. Ele desconfiou e chamou a polícia. Fátima admitiu o furto.

“SENHOR” delegado, antes de mais nada, e ao contrário de outras pessoas acusadas que clamam inocência, quero lhe dizer que admito minha transgressão. Mais: sempre soube que acabaria presa. É um destino que está no meu nome. Quem se chama Carceiro, senhor delegado, dificilmente escapará ao cárcere, não é mesmo?

Isto posto, quero dizer que não estou arrependida. Ao contrário, sinto-me perfeitamente tranquila. Fiz o que queria fazer. Há muito tempo eu cobiçava esta corrente de ouro, senhor delegado. Era a joia da minha vida, feita por um artista joalheiro especialmente para mim. Prova disso é que ficou exposta um tempão e ninguém a levou. A corrente de ouro estava à minha espera.

Mas havia um problema: eu não tinha dinheiro para comprá-la. Essa desigual distribuição de renda, o senhor sabe… Uma coisa que precisa ser corrigida, e decidi tomar a iniciativa neste sentido. Resolvi apossar-me da corrente. Não foi difícil: entrei na joalheria, pedi para ver pulseiras, anéis, colares. E a corrente. Enquanto o vendedor tirava uma joia da vitrine eu, mais que depressa, engoli a corrente. Engoli sem água, em seco, e olhe que uma corrente não é um comprimido qualquer. Mas é que a corrente queria ser engolida, sabe? Queria, por assim dizer, pular para dentro de mim.

Agora: tive um pequeno azar. Eu esperava que o vendedor, tendo colocado tanta coisa sobre o balcão, não desse falta da corrente. Mas era um obsessivo esse vendedor. Sabia de cada joia da loja, e assim imediatamente perguntou pela corrente. Chamou a polícia e aqui estou. Muito contente, senhor delegado. Fiz o que podia fazer. Eu não sou daquelas pessoas que escondem dinheiro na cueca, em primeiro lugar porque não tenho contato com certos políticos e porque não uso cueca, só calcinha, que não serve para essas coisas. Depois, engoli algo que vale a pena. Não foi um panetone vagabundo, desses que os políticos distribuem no Natal. Foi uma corrente de ouro. Que está dentro de mim, quietinha e feliz.

Por pouco tempo, acha o senhor. E é aí que o senhor se engana, senhor delegado. Porque sofro de prisão de ventre: posso passar dias sem evacuar. Isto, que sempre foi um transtorno, agora revela-se um benefício, permitindo que eu fique mais tempo com a minha corrente. Se e quando ela sair, não será mais a mesma corrente. Algo dela, uma pequena partícula que seja, terá se desprendido e terá sido incorporada a meu organismo. Eu e a corrente seremos uma coisa só, senhor delegado. A corrente da vida levou-me à vitória, deu-me uma recompensa que ninguém jamais me arrebatará.”

* MOACYR SCLIAR é escritor.
moacyr.scliar@uol.com.br

08/12/2009

A John Lennon



Hoje faz 29 anos que John Lennon morreu. Instant Karma, no vídeo acima.

"Instant Karma's gonna get you..."

No vídeo abaixo, God.



"Deus é um conceito com o qual medimos nossa dor..."

God

God is a concept,
By which we measure
Our pain.
I'll say it again.
God is a concept,
By which we measure
Our pain.
I don't believe in magic
I don't believe in I-Ching
I don't believe in Bible
I don't believe in Tarot
I don't believe in Hitler
I don't believe in Jesus
I don't believe in Kennedy
I don't believe in Buddha
I don't believe in Mantra
I don't believe in Gita
I don't believe in Yoga
I don't believe in Kings
I don't believe in Elvis
I don't believe in Zimmerman
I don't believe in Beatles
I just believe in me
Yoko and me
And that's reality.
The dream is over,
What can I say?
The dream is over
Yesterday
I was the dreamweaver,
But now I'm reborn.
I was the walrus,
But now I'm John.
And so dear friends,
You just have to carry on
The dream is over.

A Jim Morrison



Se estivesse vivo, o poeta James Douglas Morrison completaria, hoje (8 de dezembro), 66 anos. Além de poeta, Jim Morrison foi vocalista do The Doors. Vai aí um poema do cara.

O PALÁCIO DO EXÍLIO

Durante sete anos habitei no livre Palácio do Exílio
Jogando estranhos jogos com as raparigas da ilha
Agora estou de volta à terra dos justos
E dos fortes e dos sábios
Irmãos e irmãs da pálida floresta
Crianças da noite
Quem de entre vós fugirá com a caça?
Agora a noite chega com a sua legião púrpura
Metam-se nas vossas tendas e nos vossos sonhos
Amanhã entramos na cidade do meu nascimento
Quero estar preparado.

04/12/2009

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"No mais..."


Quando ainda adolescente, aprendi a tocar violão com as músicas de Zé Ramalho, enquanto outros amigos aprendiam com Nirvana e Legião Urbana. Gostava das duas últimas bandas também, mas por Zé eu ficava realmente admirado. Meu pai, o Nelson, que canta como ninguém, ensinou-me uns primeiros passos de violão, além de me fazer gostar de música e literatura desde criança.

Aos 15 anos abandonei a escola e me apeguei aos livros de Júlio Verne e Erich von Däniken. Aos 16 me abracei ao violão dado por meu pai e aos discos de Zé Ramalho e Geraldo Azevedo, da minha mãe.Aos 17 voltei à escola pra depois me formar no bacharelado de história. Ter voltado a estudar pode ter sido o meu maior erro...

Ainda mais História, que só dá trabalho e tristeza!

Mas a tristeza também é boa, e isso me remete a Rilke (sempre ele...), que faria aniversário hoje (4 de dezembro), caso não fosse vivo só nas suas palavras, que romperam as barreiras do tempo, e vieram, também, cair em pedaços dispersos aqui neste blog.

"Há meros devaneios tolos..."

01/12/2009

"O Verão vem."

"O tempo, neste caso, não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não são nada. Ser artista é não contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva, que resiste, confiante, aos grandes ventos da Primavera, sem temer que o Verão possa não vir. O Verão vem. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão calmos como se tivessem na frente a eternidade. Aprendo-o todos os dias à custa de sofrimentos que bendigo: a paciência é tudo."

Pedaço de "Cartas a um jovem poeta", de Rilke.