09/01/2010

"Uma Faca só Lâmina"

(OU: SERVENTIA DAS IDÉIAS FIXAS)

por João Cabral de Mello Neto

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

(1955)

3 comentários:

Andrei Correia disse...

Assim como uma bala, André, uma faca é só lâmina porque de cabo não precisa.

O que se integrou e o que falta é o mesmo sem cabo, só lâmina.

O cabo é o antes. O depois é só lâmina. O cabo não se integra, não aumenta a densidade, só a lâmina.

Um lado não pesa mais que o outro por conta do cabo. Sim, da lâmina.

O peso é só do que está dentro, quer dizer, só da lâmina.

André Raboni disse...

Andrei,

Tu dizes ser um refém das métricas, mas proseias como quem escreve versos.

Oxalá!

Dodô Fonseca disse...

Ele dedicou esse poema para Vinícius de Morais, pois não considerava-o poeta.