21/02/2010

Entre Pirandello e Copérnico

O vídeo acima foi escolhido para acompanhar musicalmente este post. A música é Libertango, de Astor Piazzola, executada pelo violoncelista Yo Yo Ma. Recomendo que se inicie a música junto ao texto transcrito mais abaixo.

Há uns seis meses escrevi um ensaio sobre a quantidade imensa de inutilidades que são escritas por aí, em jornais e, mesmo, na academia. À guisa de tanta inutilidade, aqui neste post vai mais uma – que, ao menos, se pretende descontraída e não sem um pouco de humor e reflexão sobre a nossa posição no Universo.

Possivelmente alguns usarão um dos trechos da citação em mesas de bares, sobretudo o da “boa desculpa para bêbados”, e se o fizerem, tanto melhor, que o post não será de todo inútil – ou, pelo menos, menos inútil que muitas “obras” acadêmicas e jornalísticas que por aí se perde tempo a ler. E, se este post é inútil, no mínimo é um pouco menos por citar uma obra merecedora de atenção, embalada por uma bela música, além de expôr alguma reflexão sobre nós mesmos e nossos costumes.

É que descobri que na sexta-feira, dia 19/02, fez 537 anos que nasceu o astrônomo polonês Nicolau Copérnico, o homem que demonstrou que a terra girava em torno do sol, e que o planeta é redondo. A primeira relação que minha mente colocou em evidência foi o nome do escritor italiano, Luigi Pirandello. Mas o que um teria que ver com o outro? Bem, dentre muitas respostas, a que me soa pertinente, aqui, é uma passagem do livro O falecido Mattia Pascal, do próprio Pirandello.

Segue a passagem, de refinada ironia e profundidade marcante – do autor da também memorável obra Seis personagens à procura de um autor -, no contexto da arrumação que o Padre Elígio Pellegrinotto dava à biblioteca doada pelo Monsenhor Boccamazza ao seu município.

Vale alguns risos e qualquer reflexão para um fim de semana como o que se inicia hoje, sexta-feira, junto ao ano de 2010, que para muitos começa apenas na semana que vem.

“Assim, aos poucos, tomei gosto por esse tipo de leituras. Agora, Padre Elígio diz-me que meu livro deveria seguir o modelo desses que ele vai desencantando na biblioteca, isto é, ter o especial sabor que eles têm. Eu dou de ombros e respondo que não é tarefa para mim. E outra coisa ainda me retém.

Todo suado e empoeirado, padre Elígio desce da escada e vem respirar um pouco de ar fresco, na pequena horta que conseguiu fazer nascer aqui, atrás da abside, protegida, em toda a volta, por fasquias e puas de madeira.

- Ora, meu reverendo amigo – digo-lhe, sentado na mureta, o queixo apoiado no castão da bengala, enquanto ele cuida de suas alfaces. – Não me parece mais, o atual, tempo de escrever livros, nem por brincadeira. No que diz respeito à literatura, como a tudo o mais, devo repetir meu costumeiro estribilho: “Maldito seja Copérnico!

- Oh, oh, oh, que tem Copérnico a ver com isso?! – exclama Padre Elígio, erguendo o busto, o rosto afogueado sob o grande chapéu de palha.

- Tem, sim, Padre Elígio. Porque, quando a Terra não girava…

- Ora esta! Mas se sempre girou!

- Não é verdade. O homem não sabia disso e, portanto, era como se não girasse. Para muitos, ela continua a não girar também agora. Disse que girava, no outro dia, a um velho camponês; sabe o que ele me respondeu? Que era uma boa desculpa para bêbados. Aliás, o senhor também, tenha paciência, não pode pôr em dúvida que Josué fez o sol parar. Mas deixemos isto. Digo que, quando a Terra não girava e o homem, vestido de grego ou de romano, nela fazia boa figura, formando tão elevado conceito de si e comprazendo-se tanto com sua própria dignidade, acredito perfeitamente que pudesse ter acolhida favorável uma narração minuciosa e repleta de inúteis pormenores. Lê-se ou não se lê em Quintiliano, como o senhor me ensinou, que a História devia ser feita para narrar e não para demonstrar?

- Não nego – responde Padre Elígio -, mas, também, é verdade que nunca se escreveram tantos livros, tão pormenorizados, ou melhor, tão carregados das mais secretas minudências, como desde quando, no seu modo de dizer, a Terra começou a girar.

- Está bem: o senhor conde levantou-se cedo, às oito horas e meia em pontoA senhora condessa pôs um vestido lilás, ricamente guarnecido de rendas no pescoçoTerezinha estava morrendo de fomeLucrécia consumia-se de amor… Oh meu Deus do céu! Que importância isso pode ter para mim? Estamos ou não estamos num invisível piãozinho, para o qual um fio de sol serve de chicote, num grãozinho de areia enlouquecido, que gira e continua a girar, sem saber por quê, sem chegar nunca a destinação, como se achasse muito divertido girar assim, para fazer-nos sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e, no fim, fazer-nos morrer (a miúdo, com a consciência de ter cometido uma série de pequenas tolices), após cinquenta ou sessenta giros? Copérnico, Copérnico, meu caro Padre Elígio, estragou a humanidade irremediavelmente. Agora, todos já nos adaptamos, aos poucos, à nova concepção de nossa infinita pequenez e a nos considerarmos menos do que nada, no Universo, com todas as nossas lindas descobertas e invenções. Que valor quer, então, que tenham as notícias, já não digo das misérias privadas, mas das nossas calamidades gerais? Histórias de minhocas, as nossas, agora. Leu a respeito daquele pequeno desastre nas Antilhas? Nada de importante. A Terra, coitada, cansada de girar, como quer aquele cônego polonês, sem qualquer finalidade, teve um pequeno movimento de impaciência e soprou um pouco de fogo por uma de suas muitas bocas. Sabe-se lá o que foi que lhe agitou essa espécie de bílis! Talvez a estupipez dos homens, que nunca foram tão cacetes como agora. Resultado: vários milhares de minhocas torradas. E toca para a frente! Quem fala mais nisso?

Padre Elígio Pellegrinotto, porém, faz-me observar que, por mais esforços que empreguemos no cruel intento de arrancar, de destruir as ilusões que a previdente natureza criou para o nosso bem, não o conseguimos. Por sorte, o homem distrai-se facilmente.

Isso lá é verdade. Nosso Município, em certas noites marcadas na folhinha, não manda acender os lampiões e, com frequência, se o tempo é nublado, nos deixa no escuro.

E isso significa, no fundo, que nós, ainda hoje, acreditamos que a lua esteja no céu tão-só para dar-nos luz à noite, tal como o sol de dia, e as estrelas, somente para oferecer-nos um maravilhoso espetáculo. Pronto. E, com muita frequência, esquecemos que somos átomos infinitesimais, passamos a respeitar-nos e admirar-nos reciprocamente e somos capazes de engalfinhar-nos por um pedacinho de terra ou de queixar-nos de certas coisas que, se estivéssemos compenetrados do que somos realmente, deveriam parecer-nos desprezíveis misérias.”

Trecho de “O Falecido Mattia Pascal”
Pág. 15-17 (Abril Culrural, 1978)

- Luigi Pirandello

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