20/03/2010

"E tome gravata!..."



"Você que só ganha pra juntar
O que é que há, diz pra mim, o que é que há?
Você vai ver um dia
Em que fria você vai entrar

Por cima uma laje
Embaixo a escuridão
É fogo, irmão! É fogo, irmão!

Pois é, amigo, como se dizia antigamente, o buraco é mais embaixo... E você com todo o seu baú, vai ficar por lá na mais total solidão, pensando à beça que não levou nada do que juntou: só seu terno de cerimônia. Que fossa, hein, meu chapa, que fossa...

Você que não pára pra pensar
Que o tempo é curto e não pára de passar
Você vai ver um dia, que remorso!
Como é bom parar
Ver um sol se pôr
Ou ver um sol raiar
E desligar, e desligar

Mas você, que esperança... Bolsa, títulos, capital de giro, public relations (e tome gravata!), protocolos, comendas, caviar, champanhe (e tome gravata!), o amor sem paixão, o corpo sem alma, o pensamento sem espírito (e tome gravata!) e lá um belo dia, o enfarte; ou, pior ainda, o psiquiatra...

Você que só faz usufruir
E tem mulher pra usar ou pra exibir
Você vai ver um dia
Em que toca você foi bulir!

A mulher foi feita
Pro amor e pro perdão
Cai nessa não, cai nessa não

Você, por exemplo, está aí com a boneca do seu lado, linda e chiquérrima, crente que é o amo e senhor do material. E é aí que o distinto está muitíssimo enganado. O mais das vezes, ela anda longe, perdida num mundo lírico e confuso, cheio de canções, aventura e magia. E você nem sequer toca a sua alma. É, as mulheres são muito estranhas, muito estranhas...

Você que não gosta de gostar
Pra não sofrer, não sorrir e não chorar
Você vai ver um dia
Em que fria você vai entrar!

Por cima uma laje
Embaixo a escuridão
É fogo, irmão! É fogo, irmão!"


Vinícius de Moraes
Testamento

13/03/2010

Bob Dylan e a música de conteúdo

Uma bela melodia e uma harmonia bem arranjada faz por si uma boa música. Com "The great Gig in the Sky", Pink Floyd crivou, como nenhuma outra banda, que uma bela música pode dispensar letras. Claro que não foi o Floyd quem inventou isso, mas a citação serve como exemplo - e a uso neste sentido.

Evidentemente que uma bela música também pode vir acompanhada de alguma letra, ou mesmo de um derramamento de versos poéticos pouco ou muito compreensíveis, desde que poéticos. Não estou falando de coesão, mas de beleza, e ninguém aqui é tolo o suficiente para acreditar que qualquer beleza precise, necessariamente, ser coesa.

Quando uma bela melodia e uma bem arranjada harmonia combinam-se com uma letra espetacular, o resultado certamente será bom. Como na música abaixo, de Bob Dylan, "Hurricane".



A canção acima combina tudo isso que falei, e saúda o ouvinte com uma grande história - o tal conteúdo do título deste post.

"Hurricane" (furação) era o codinome do boxeador norte-americano, Rubin Carter, nascido no dia 6 de maio de 1937, e preso em 1966, acusado de um triplo homicídio num bar. Ficou encarcerado durante longos 19 anos, e solto posteriormente, no ano de 1985, inocentado.

A prisão destruiu sua brilhante carreira do "Furacão", já que era favorito pra ganhar o cinturão da categoria Peso Médio em 1966, quando marcava seus 29 anos de idade. O contexto, todos sabem, aqueles anos de luta por direito civis, em que se destacaram figuras como Malcom X e Martin Luther King, mesclados às reminiscências podres de branquelos doentes da Ku Klux Klan e seus simpatizantes microfascistas. O "Furacão" viria a receber a congratulação no ano de 1993, quase 30 anos depois de brilhar nos ringues.

A história de "Hurricane" é uma daquelas sagas judiciais de negros norte-americanos, dignas de filme. E ganhou este filme, sendo representado por Denzel Washington no longa The Hurricane.

A música de Bob Dylan é belíssima. Transplanta ao ouvinte uma vibração muito intensa, com momentos que causam arrepios. Não sei se o brilho é da bela melodia, da harmonia bem colocada, ou do rico conteúdo cantado numa letra forte, que traduz a história aguerrida de Rubin "Hurricane" Carter.

Possivelmente o brilho se deve à mágica combinação de todos esses elementos.

Um brinde ao Furacão e a Bob Dylan!

Hurricane
Bob Dylan e Jacques Levy

Tiros de revólver ressoam na noite dentro do bar
entra Patty Valentine vinda do salão superior
ela vê o garçon numa poça de sangue
solta um grito “Meu Deus, mataram todos eles!”
aí vem a história do Furacão
o homem que as autoridades acabaram culpando
por algo que ele nunca fez
colocando numa cela de prisão, mas houve um tempo
em que podia ter sido o campeão mundial

Três corpos deitados ali é o que Patty vê
e outro homem chamado Bello rodeando misteriosamente
“Eu não fiz isso” ele diz e joga os braços pra cima
“Estava só roubando a registradora, espero que você entenda
eu os vi partindo” ele diz e pára
“É melhor um de nós ligar pros tiras”
e assim Patty chama os tiras
e eles chegam na cena com suas luzes vermelhas piscando
na noite quente de New Jersey

Enquanto isso, bem longe, em outra parte da cidade
Rubin Carter e uns dois amigos estão dando algumas voltas de carro
o pretendente número um à coroa dos pesos-médios
não tinha idéia do tipo de merda que estava para baixar
quando um tira o fez parar no acostamento
igualzinho à vez anterior e à outra vez antes dessa
em Paterson é assim mesmo que as coisas rolam
se você é negro, melhor nem aparecer na rua
a não ser que queira atrair uma batida policial

Alfred Bello tinha um parceiro e ele soltou um papo atrás dos tiras
ele e Arthur Dexter Bradley estavam só fazendo uma ronda
ele disse “Vi dois homens sairem correndo, pareciam pesos-médios
pularam dentro de um carro branco com a placa de outro estado”
e a senhorita Patty Valentine apenas assentiu com a cabeça
um tira disse “Esperem um minuto, rapazes, este aqui não está morto”
então o levaram à enfermaria
e embora esse homem mal pudesse enxergar
disseram a ele que podia identificar os culpados

Às 4 da manhã eles arrastam Ruby consigo
o levam para o hospital e o trazem escada cima
o homem ferido olha pra cima através de seu único olho moribundo
diz ” Por que vocês o trouxeram aqui dentro? Não é esse o cara!”
sim, eis aqui a história do Furacão
o homem que as autoridades acabaram culpando
por algo que ele nunca fez
colocando numa cela de prisão, mas houve um tempo
em que podia ter sido o campeão mundial

Quatro meses depois, os guetos estão em chamas
Rubin está na América do Sul, lutando por seu nome
enquanto Arthur Dexter Bradley continua no ramo do assalto
e os tiras estão apertando-o
procurando alguém pra culpar
“Lembra daquele assassinato que aconteceu num bar?”
“Lembra que você disse ter visto o carro fugitivo?”
“Você acha que está a fim de brincar com a lei?”
“Não acha que talvez tenha sido aquele lutador
que você viu correndo pela noite?”
“Não se esqueça de que você é branco”

Arthur Dexter Bradley disse “Não tenho muita certeza”
os tiras disseram “Um rapaz como você precisa de uma folga da polícia
te pegamos por aquele serviço no motel
e agora estamos conversando com seu amigo Bello
agora,você não querter de voltar pra cadeia
seja um sujeito legal
Você estará fazendo um favor a sociedade
aquele filho-da-puta é valente e está ficando cada vez mais
nós queremos botar o rabo dele pra fritar
queremos pregar esse triplo assassinato nele
o cara não é nenhum cavalheiro”

Rubin podia nocautear um cara com apenas um soco
mas nunca gostou muito de falar sobre isso
“É meu trabalho”, diria, “E eu o faço para ser pago
e quando isso termina, prefiro cair fora o mais rápido possível
na direção de algum paraíso
onde riachos de trutas correm e o ar é ótimo
e andar a cavalo ao longo de uma trilha”
Mas aí o levaram para a cadeia
onde tentaram transformar um homem num rato

Todas as cartas de Rubin já estavam marcadas
o julgamento foi um circo de porcos, ele não teve a menor chance
o juiz fez das testemunhas de Rubin bêbados das favelas
e para os brancos que assistiam, ele era um vagabundo revolucionário
e para os negros, apenas mais um crioulo maluco
ninguém duvidava que ele tinha apertado o gatilho
e embora não conseguissem produzir a arma
o promotor público disse que era ele o responsável
e o juri, todos de brancos, concordou

Rubin Carter foi falsamente julgado
o crime foi de assassinato “em primeiro grau”
adivinha quem testemunhou?
Bello e Bradley, e ambos mentiram descaradamente
e os jornais, todos pegaram uma carona nessa onda
como pode a vida de um homem desses
ficar na palma da mão de algum tolo?
Vê-lo obviamente condenado numa armação
não teve outro jeito a não ser me fazer sentir vergonha
de morar numa terra onde a justiça é um jogo

Agora todos os criminosos em seus paletós e gravatas
estão livres para beber martinis e assitir o sol nascer
enquanto Rubin fica sentado como Buda em uma cela de 3 metros
um inocente num inferno vivo
essa é a história do Furacão
mas não terá terminado enquanto não limparem seu nome
e devolverem a ele o tempo que serviu
colocado numa cela de prisão, mas houve um tempo
em que podia ter sido o campeão mundial

12/03/2010

As rosas e o Pavão



Nelson Gonçalves acima, Edinardo abaixo, em plena sexta-feira, depois de duas semanas intensas de trabalheira danada.

07/03/2010

Poema de quem vai


Oxe, menino, que chora.
Por hora é bom se animar.
Passa o tempo, a vida a cantar.

Na hora do gozo, é riso que não cabe,
nem caberá, enfim, no maior esplendor
Cantar as canções que se hão de amar

– que o canto da vida, é vasto, é rir-chorar.

Será que será, que se vai pra ver.
Oxalá!, que se vá, nem que pra ir se for parar.
Vai que vai, que se vai pra passar.

E se for, que se vá o amor de convir(ver),
que querer é o que mais falta
Na alma que para ir se vai de graça

– sobra Veio naquele que chora, tanta graça!


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* Poema para Pedro Inácio,
nosso amigo,
Mestre desde antes de o ser academicamente.

** Arte da foto: Tiago Acioli Peixoto.