26/01/2009

A Cidade e os Mortos: Laudômia

"Laudômia, como todas as cidades, tem a seu lado uma outra cidade em que os habitantes possuem os mesmos nomes: é a Laudômia dos mortos, o cemitério. Mas a característica particular de Laudômia é a de ser, mais do que dupla, tripla; isto é, de compreender uma terceira Laudômia, que é a dos não-nascidos.

As prosperidades da cidade dupla são conhecidas. Quanto mais a Laudômia dos vivos se povoa e se dilata, mais aumenta a quantidade de tumbas do lado de fora da muralha. As ruas da Laudômia dos mortos são largas apenas o bastante para que transite o carro fúnebre, e são ladeadas por edifícios desprovidos de janelas; mas o traçado das ruas e a seqüência das moradias repetem os da Laudômia viva e, assim como nesta, as famílias são cada vez mais comprimidas em compactos nichos sobrepostos. Nas tardes ensolaradas, a população vivente visita os mortos e decifra os próprios nomes nas lajes de pedra: da mesma forma que a cidade dos vivos, esta comunica uma história de sofrimentos, irritações, ilusões, sentimentos; só que aqui tudo se tornou necessário, livre do acaso, arquivado, posto em ordem. E, para se sentir segura, a Laudômia viva precisa procurar na Laudômia dos mortos a explicação de si própria, não obstante o risco de encontrar explicações a mais ou a menos: explicações para mais de uma Laudômia, para cidades diferentes que poderiam ter existido mas não existiram, ou razões parciais, contraditórias, enganosas.

Muito justa, Laudômia confere um domicílio igualmente vasto àqueles que ainda vão nascer; claro que o espaço não é proporcional ao seu número, que se supõe infinito, mas, sendo um lugar vazio, circundado por uma arquitetura repleta de nichos e reentrâncias e cavidades, e podendo-se atribuir aos não-nascidos a dimensão que se deseja, imaginá-los do tamanho de um rato ou de um bicho-da-seda, ou de uma formiga, ou de um ovo de formiga, nada impede de visualizá-los eretos ou agachados em cada um dos suportes ou estantes que ressaem das paredes, em cada um dos capitéis ou plintos, em fila ou esparralhados, atentos às incumbências de suas vidas futuras, e de contemplar numa veia do mármore Laudômia inteira daqui a cem ou mil anos, apinhada de multidões vestidas de modo jamais visto, todos, por exemplo, com barreganas cor de berinjela, ou todos com plumas de peru nos turbantes, e de reconhecer os próprios descendentes e os das famílias aliadas ou inimigas, dos devedores e credores, que vão e vêm perpetuando os negócios, as vinganças, os matrimônios por amor ou por interesse. Os viventes de Laudômia freqüentam a casa dos não-nascidos, interrogando-os; os passos ressoam sob os tetos vazios; as questões são formuladas em silêncio: e é sempre deles próprios que perguntam os vivos, não daqueles que virão; alguns se preocupam em deixar uma ilustre memória de si, outros em encobrir as suas vergonhas; todos gostariam de seguir o fio das conseqüências dos próprios atos, mas, quanto mais aguçam o olhar, menos reconhecem um traço contínuo; os nascituros de Laudômia aparecem pontilhados como grãos de poeira, afastados do antes e do depois.

A Laudômia dos não-nascidos não transmite, como a dos mortos, qualquer segurança aos habitantes da Laudômia viva, só apreensão. Nos pensamentos dos visitantes, acabam por se abrir dois caminhos e não se sabe qual reserva maior angústia: ou se pensa que o número de nascituros supera grandemente o de todos os vivos e de todos os mortos, e, nesse caso, em cada poro de pedra acumulam-se multidões invisíveis, amontoadas nas encostas do funil como nas arquibancadas de um estádio, e, uma vez que a cada geração a descendência de Laudômia se multiplica, em cada funil se abrem centenas de funis, cada qual com milhões de pessoas que devem nascer e esticam os pescoços e abrem a boca para não sufocar; ou então se pensa que Laudômia também desaparecerá, não se sabe quando, e todos os seus habitantes desaparecerão com ela, isto é, as gerações se sucederão até uma certa cifra e desta não passarão, e por isso a Laudômia dos mortos e a dos não-nascidos são como as duas ampolas de uma ampulheta que não se vira, cada passagem entre o nascimento e a morte é um grão de areia que atravessa o estreitamento, e nascerá um último habitante de Laudômia, um último grão a cair que, no momento, está aguardando no alto da pilha."

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* Pedaço de As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino.

19/01/2009

Glauber, o Pedro the Lara

"Procuremos alguma desolada sombra
e em lágrimas tristes aliviemos nossos corações."
Shakeaspeare - in: Macbeth

Nunca mais as calçadas de Barra de Jangada sentirão o peso do corpo de Glauber, nas noites infinitas e gloriosas de Violão, Vinho, Vida e Verve Poética.

Nunca mais as ruas de Barra servirão de tapete para o passar daquele Cara que por tantas vezes por ali passou, a trabalho ou a passeio, desde a mais tenra idade.

Nunca mais as gargalhadas altas e belamente debochadas de Glauber ecoarão por aqueles ares e pelas ruas de barro de Barra.

Foram memoráveis todas aquelas idas, junto com a rapaziada, à Caverna de Pontezinha, para nossas celebrações da Vida dos Espíritos Criadores!

Foram-se eternamente aqueles momentos de tédio em que, na falta do que fazer, ria-se um da cara dos outros.


Está agora em minhas mãos aquela fita do Led Zeppelin, que tu, Glauber, me fizestes proprietário, com a gravação do nosso saudoso e querido "The Songs Remains the Same!", com Stairway to Heaven e No Quarter ...
(os títulos das músicas estão com links para seus vídeos no Youtube)

"Há uma senhora que acha
Que tudo o que reluz é ouro
E ela está comprando uma escada para o paraíso"
Stairway to Heaven

"Andamos lado a lado com a Morte e
O mal nos espreita a cada passo"
No Quarter

Aqueles sons que soavam grandiosos entre todas aquelas noites de Barra, sob as luas encandecentes das silentes noites, acompanhadas de nossos Violões e nossas Almas Criativas, que se harmonizavam com os Espíritos de todas as Madrugadas Inefáveis!

Nunca mais hei de ver meu amigo, Glauber - e, essa é uma fatalidade que só aos deuses compete explicar.

NUNCA MAIS.

"Nada na vida é para sempre", diz a poética popular.
- Eu digo: a morte é pra sempre.

Vitalícia ocasião.


Ela, a morte, beijou nosso insubstituível e fiel amigo, Glauber.

NUNCA MAIS.

Nunca mais, meu Amigo, tocaremos juntos nossas músicas, plenas de criatividade, repletas das mais belas melodias e harmonias.

Mas, no meu Espírito de Criação ainda existe o Teu.

Agora, resta-nos a ausência dos teus solos irretocáveis e virtuosos, cheios de ímpetos e Espírito Criador. Tua presença sempre discretamente notável.

Como nós, tuas crias também hão de sentir tua falta!


Glauber sempre foi um apaixonado pela Vida, pelos Filhos, pela Música e pelos Amigos!

Teu espírito de Criador (socialmente um homem do trabalho e Pai de Filhos, que teve seu Espírito Criador em ebulição quando de nossa juventude, que ainda nos acompanha, Espírito Grande que tantas vezes foi feito pequeno por circunstâncias sócio-econômicas, sugado que era pelo trabalho), dividido que foi durante toda a vida entre a Verve Criadora e a vã e vil necessidade do trabalho suado e cotidiano - a grande e histórica Vala das Almas Belas, por onde se perdem tantos Espíritos da Virtuosa Criação Artística!

São os efeitos das exigências de nossa sociedade de consumo, medíocre, mediana e meritocraticamente ordeira,
"Abjetas das Vencedorias"; alheia aos Desejos mais Supremos dos Criadores de Mundos!

Pois foram precisamente os desejos inferiores do consumo alheio que te sugaram a vida
- nesta bosta de morte estúpida!

Choro, meu amigo. Choro nesta noite e sei que muitas mais ainda por vir!

Choro por NUNCA MAIS em vida poder ver o teu sorriso,
Nem as tuas lágrimas de choro.


Choro por não poder NUNCA MAIS compartilhar alegrias e sofrimentos com você, meu véio!

"Dies irae, dies illa
Solvet saeclum in favilla"
"Dia de ira, aquele dia,
No qual os séculos se desfarão em cinzas"
Réquiem de Mozart

Acabei de achar escrito em um caderno antigo, uma Letra-Texto de música escrita por Glauber, no mês de abril de 2000.

Reproduzo para tod@s:


"Foi mamãe que me ensinou
Quase tudo que
Eu sei.

Me enfiando na escola influências de vocês,
aprendendo o que não queria,
fui obrigado a isso,
Eu sei.

Aprendi o socialismo;
vi quem são os 'falsos reis'.
Mastiguei toda a imundície
Pra sobreviver,
Eu sei.

Engolindo essa mentira,
foi aí que eu encherguei:
será que é preciso ser hipócrita pra viver?
Sendo assim, não me conformo.

Antes não queria nascer.
Mas, já que nasci,
Eu prefiro morrer.

Morrendo não adianta...
Tenho que viver
Pra mostrar pra vocês
Como deve ser.

E daí o quê vai adiantar?

Acho que nunca vou vencer...

Mas, tenho meus amigos para me entender."

O texto acima foi escrito por Glauber,
o viandante dos Cabelos de 'Pedro de Lara',
sob a Lua e os Vinhos
de uma noite de abril do ano 2000

"Qual foi, meu irmão, tu tá ligado que a história de cada um de nós diz mais do que a história do mundo todo, né!
E, tu tá ligado por quê?
Porque a história do mundo quem faz é a gente, né não, brother?!
E mesmo se a gente se for... , a gente continua existindo nas idéias dos nossos amigos, tá ligado?"

"Às vezes sentimos coisas fortes, pensamentos irreconhecíveis. E, quando nos defrontamos com esses sentimentos, nos vemos tão fortes e ao mesmo tempo tão fracos, a ponto de nos acharmos crianças nas palmatórias de nossas mães.
É esse tipo de coisa que nos torna fortes; porém, se incontrolável, ficamos perdidos em nosso próprio mundo e, para nos acharmos, basta ter simplicidade e meditar.
O mundo que vos falo é o nosso coração."

Glauber, o Pedro The Lara

Escrito em meu caderno.


14/01/2009

Nem mais, nem menos


Séculos e séculos de
melhoramentos
E, onde fomos parar?

Fomos parando...

Ir-se sem alvos supremos
É o supremo desejo
Daqueles que não desejam
Desejos-Supremos.

E, os melhoradores da humanidade
Continuam mediocrizando
os medianos desejos.


E as Grandezas se apequenam,
Plenas de estanques.

Um imenso mais ou menos
Que não contenta nem o Mais nem o Menos...

Poema Frustrado

Ao lado, beira a tangência da vida.
Tudo borda,
Quando, intenso, em verdade,

Tudo quer transbordar...

O gozo que estanca na beira do jorro;
O cigarro que apaga na hora do trago
Do penúltimo gole da cerveja
Do copo que caiu e quebrou.

Na tangência da vida, a morte espreita...

E, a morte
(o vitalício fim),
Comunga com o Espírito do Sim!
O requerido ou ressentido
Enfim,
que assombroso
ou desejoso
É
e não
É.

13/01/2009

Agricultores do asfalto

As mangueiras entornando água
Matam a sede das ruas...

Aguando poeira,
Saciam a sede das casas
E dos sonhos.

A esperança-vã pergunta:
Será que um dia
Há de brotar asfasto da terra?