13/02/2009

Salvador Dali e o seu coelhinho

Estava sentado nas bordas da vida, na Praça da Saudade. Chovia. Chovia deveras. A água caia sobre minhas pálpebras como o choro divino quando o sol enruga a Estátua.

Chovia e eu sorria em prantos inefáveis… ‘Como é bom estar triste’ - pensava.

No manto dos meus dedos derretiam-se as gotas do orvalho solar. E como balançavam os cabelos daquela estátua! - Semelhantes eram às dores das geladeiras vazias.

A autoria do texto acima eu desconheço. Acabo de escrever e não me reconheço nele - mas, em alguns detalhes, fica-me a dúvida se não é de fato de minha autoria…

Saiu de meus dedos, mas não de mim. Brotou de minha inconsciência, que pertence mais a mim que eu mesmo - embora me seja estranha, assombrosa e irreconhecível, em muitas ocasiões.

Bem, o que danado isso tudo tem a ver com o título do post? E com a tela acima, de Dali?

Nada em especial. Apenas um arroto de imagens.

“André está louco”, podem pensar… Não, não estou louco. Apenas inspirado. Se isso significa estar louco, então, reconheço, estou louco.

Há alguns dias me deparei com a morte de um amigo de infância (caso queiram, leiam sobre Glauber, o viandante dos Cabelos de ‘Pedro de Lara’, clicando aqui).

Mas, não é sobre a morte do meu amigo que vou falar. Aliás, não vou falar de morte alguma, nem da morte de Salvador Dali - que há 20 anos abraçou o pintor surrealista. Ele foi ter com os deuses no dia 23 de janeiro de 1989.

Em verdade, caros leitores, perdoem-me, mas não vou falar de nada em específico… Seria uma afronta ao meu próprio juízo falar sobre Dali e praticar o surrealismo de uma forma estriadamente racional, sem um pouco de inventividade, leveza e derretimento do inconsciente.

Minha memória não falha neste momento. Persiste, sim, a lembrança dos coelhinhos. Vocês conhecem a estória do homem que vomitava coelhinhos? E a do homem que levava consigo, para onde quer que fosse, um coelhinho?

Angustiado com o fato de vomitar coelhinhos, alvos coelhinhos brancos (do tamanho de coelhinhos de chocolate), plantava pequenos trevos para entreter os bichinhos que provinham (não se sabe ao certo de onde), das suas entranhas.

Retirava-os com os dedos, e eles ficavam contentes.

E como fazia cócegas em sua garganta! no momento em que mais um coelhinho brotava, com seus alvos pêlos, saltando para a vida - onde habitariam aquele apartamento de uma senhorita que estava em Paris, deixando o imóvel a encargo de seu amigo (ela não sabia, até então, que ele vomitava coelhinhos…).

Na carta, a afamada carta que escrevera a uma senhorita em Paris, justificava:

“Mas não lhe escrevo por isso, envio esta carta por causa dos coelhinhos, parece-me justo informá-la; e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove.”

Não, os coelhinhos não estavam vestidos de gaiola, como certa mulher…

Apesar de, inicialmente, habitarem um armário, conforme cresciam, iam-se em disparada por todo o apartamento, divertindo-se com os objetos daquele lar.

Desconfio produndamente que os danos foram de fato reparados, de forma satisfatória…

Não. Não. Não sei se fui convencido com essa versão. Tenho para mim que o homem que vomitou os coelhinhos estava dando alguma justificativa, e uma espécie de conforto para Andrée.

O fato é que eram muito bonitos e brincalhões. Tudo bem, as brincadeiras por vezes poderiam ter sérias consequências para o apartamento de Andrée - a senhorita que estava em Paris.

Mas, fulguravam como uma constelação de estrelas brancas, movimentos de um lado para o outro, e isso já era o suficiente (embora nem todos estivessem presentes - o que preocupasse um pouco).

“São dez. Quase todos brancos. Levantam a morna cabeça para as lâmpadas do salão, os três sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. Olham seu triplo sol e estão contentes. Por isso, pulam no tapete, pelas cadeiras, dez suaves manchas se movimentam como uma constelação móvel, de um lado para outro, embora eu quisesse vê-los quietos, vê-los a meus pés e quietos - um pouco o sonho de todo deus, Andrée, o sonho jamais realizado dos deuses (…)”

Como eu disse. Desconfio seriamente da versão do autor. Mas, o que é inegável de minha parte, é que os coelhinhos pareciam ser realmente afáveis.

Não só com os trevinhos, os móveis e os livros corroídos (inclusive, ao que parece, uma história argentina, de Lopez), mas eram afáveis também (com aquela indeferença inata a todos os coelhinhos brancos) com o homem que os vomitara.

Quando sucedeu de vomitar um coelhinho preto e um coelhinho cinza, estranhou - mas, não tardou para amar a todos com a misericórdia de um deus-pai.

Além dos elefantes, bastante presentes no imaginário de Salvador Dali, também habitava, em sua mente, um coelhinho, embora Dali se esquivasse - talvez por defesa própria, para se guardar de possíveis lembranças não muito felizes, ou para confundir os críticos de arte.

Não sei bem.

Mas, Dali também foi acometido, à sua maneira, um tanto pitoresca, por um coelhinho. Não os vomitava. Mas, tinha sim um coelhinho, que carregava para onde quer que fosse.

Ele era casado com Helena Diakonova. Quando se mudaram para um determinado apartamento, não sabiam mais o que fazer com o bichinho.

Seria danoso à sua saúde dividir o mesmo ambiente com as tintas. Não sei se o coelhinho tinha ciúme das tintas (haja vista o amor de Dali por elas) e dos pincéis. O que parece certo, segundo suposições de especialistas, é que não seria nada bom a convivência deles.

A esposa de Dali, Diakonova, então, teve uma solução. Fez um ensopado com o coelhinho, e deu de jantar para ele.

O pintor se deliciou com o bichinho - à sua revelia, claro.

Tanto que, terminada a refeição, perguntou por ele.

Onde está o coelhinho?” A resposta foi simples: “Está com você.

Agora, acabara-se o problema. Dali levaria consigo, para onde quer que fosse, o seu coelhinho.

10/02/2009

O violinista da rua do Bar Central

Nem Jesus, nem Deus.

A alegria dos homens

É o Violinista da rua...


Que toca Bach
entre as mesas do bar.

Toca afetos
, entre os desafetos do bar;
Entre os olhares translúcidos
Dos ouvidos lúcidos do ar.


E, mesmo nos ouvidos pouco lúcidos,

Olvidados de qualquer afeto,

Soa, nesse ar, a transposição
do século.

Os séculos que foram olvidados
não sentiram
O mínimo

Do afeto

Do instante

Do vibrato

Intenso

Do Violinista
da rua do Bar Central.

RoLeTra RuSSa

Sonhara naquele noite
Com letras.
De todas as cores,

Tipos,

Tamanhos.


Um sonho dos mais entranhos,

No qual,

Letras com seus fenótipos

De pessoas
Caminhavam

Desordenadas

- Como bólides

Desgovernadas.

As conjurações mais assonhombrosas

Eram formadas

Aleatoriamente

- Como uma Roleta Russa

Semântica.

02/02/2009

Instalação infantil

Ontem fui questionado por um amigo sobre qual a obra de arte mais intrigante que eu já teria visto. Na hora, não soube responder direito. Citei um conto de Jorge Luís Borges, "Tlön, Uqbar, Orbius Tertius", do livro Ficções.

Pensando bem agora, reconciliado com minha memória, recordo-me de uma outra obra de arte ainda mais intrigante. Eu a vi há alguns anos atrás, quando estava visitando parentes na cidade de São Paulo. Não me lembro o nome do lugar, mas era uma pequena galeria de arte.

A obra era uma instalação. O título não me recordo também, mas era algo do tipo: "As crianças e o espaço." Fui ver a instalação à convite de uma amiga, artista plástica pouco famosa.

Não consigo descrever o assombro que tomou conta de mim quando me deparei com a instalação. Um misto de pavor, excitação e desinteresse. Curiosa sensação...

Mas, vamos à instalação.


A entrada da galeria era uma porta bastante discreta. Dentro, as luzes eram poucas, e vinham do chão. Passei por uma saleta de entrada, onde havia um livro de assinaturas. Exitei, depois assinei e entrei na sala principal.

A primeira imagem foi assustadora. Dezenas de crianças penduradas no teto e pregadas na parede. Umas choravam, gritando alto que queria ver suas mães; outras gostariam de ir ao banheiro.

O teto tinha um papel de parede que reproduzia as nuvens de algum céu qualquer.

Como estavam pregadas e penduradas, faziam suas necessidades ali mesmo. Todas estavam vestidas com roupas iguais, como fardas de uma escola.

Fui olhando o rosto daquelas crianças, umas rosadas, outras mais bronzeadas; algumas com um semblante de pavor, outras calmamente sorriam.

As da primeira fileira, estavam penduradas por um fino cabo de aço preso à cintura - como um lustre de lâmpadas - e pareciam se divertir com a aparente ausência de gravidade.

As da segunda fileira estavam amarradas pelos pés, e tinham um semblante mais apovorado que as da terceira fileira, que estavam penduradas pelos braços, e chacoalhavam as pernas, aparentemente irritadas com aquela situação.

As da quarta fileira, não me recordo bem, mas acho que estavam penduradas por um pé e uma mão - como se fizessem aquele passo de ginástica chamado "estrelinha". Suas faces eram de resignação, enfezadas como crianças abandonadas.

Elas todas estavam a cerca de 4 metros do chão.

Fui andando por baixo daquelas crianças até a última fileira, que deveria ser a décima segunda. Era, digamos, o "fundão" da sala. Essas do fundão não estavam penduradas, mas pregadas na parede do fundo. Umas de lado, outras de cabeça para baixo, outras de frente, braços e pernas abertas, como uma estrela.


Sorriam dos outros. Ou de si mesmas. Talvez sorrissem de mim - o certo é que sorriam, seja lá do que for, e olhavam para mim.

Bem, logo depois eu fui embora. Olhei meu nome assinado naquele livro. Sai pela mesma porta que entrei, acendi um cigarro e fui tentar ver um Van Gogh no Masp.