31/08/2009
Apresento-vos aqui no Desterritório: "A poção de Panoramix"
Aqueles que não seguirem o mandamento da lenda poderão ser acometidos por um terrível mal: o Nada. Poderá acontecer nada a quem não fizer o agenciamento blogosferiano. O que é bastante temeroso...
Aos que passarem por este Desterritório, que se vão para A Poção de Panoramix, adentrando sem receios pela doravante porta http://www.apocaodepanoramix.com/
26/08/2009
Cortázar - Progresso e retrocesso
Enorme, a alegria da mosca.
Tudo foi estragado por um sábio húngaro, quando descobriu que a mosca podia entrar mas não podia sair, ou vice-versa, por causa de quem sabe lá que besteira na flexibilidade das fibras daquele vidro que era muito fibroso.
Em seguida inventaram o caça-moscas com um torrão de açúcar dentro, e muitas moscas morriam desesperadas. Assim acabou toda confraternização possível com estes animais dignos de melhor sorte."
_____________________________
* No dia 26 de agosto de 1914, vinha à face da vida Julio Cortázar.
25/08/2009
Zaratustra no Outro Canto do Baile
I
"Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi
reluzir outro nos teus olhos noturnos, e
essa voluptuosidade paralisou−me o
coração: vi brilhar uma barca dourada
que se submergia em águas noturnas,
uma barca dourada que se submergia e
reaparecia fazendo sinais!
Tu dirigias um olhar aos meus pés,
doidos por dançar, um olhar acariciador,
terno, risonho e interrogador.
Duas vezes apenas agitaste com as
mãos as tuas castanholas, e já os pés
me pulavam, ébrios.
Os calcanhares erguiam−se; os dedos
escutavam para te compreender; não
tem o dançarino os ouvidos nos dedos
dos pés?
Saltei ao teu encontro; tu retrocedeste
ao meu impulso, e até a mim serpeava a
tua voadora e fugidia cabeleira.
Num pulo me afastei de ti e das tuas
serpentes: já tu te erguias com os olhos
cheios de desejos.
Com lânguidos olhares me mostras
sendas tortuosas; por tortuosas sendas
aprende astúcias o meu pé.
Receio−te quando te aproximas, amo−te
quando estás longe; a tua fuga
atrai−me; as tuas diligências detêm−me.
Sofro; mas, por ti, que não sofreria eu?
Ó, tu cuja frialdade incendeia, cujo ódio
seduz, cuja fuga prende, cujos enganos
comovem!
Quem te não odiará, grande carcereira,
sedutora, esquadrinhadora e
descobridora! Quem te não amará,
inocente, impaciente, arrebatadora
pecadora de olhos infantis!
Aonde me arrastas agora, indômito
prodígio? E já me tornas a fugir, doce
esquiva, doce ingrata!
Dançando sigo as tuas menores
pisadas. Onde estás? Dá−me a mão!
Ou um dedo sequer!
Há por aí cavernas e bosques;
extraviar−nos−emos. Pára! Detém−te!
Não vês revoarem corujas e morcegos?
Eh! lá, coruja! Morcego! Quereis brincar
comigo? Onde estamos? Com os cães
aprendestes a uivar e a rosnar.
Mostravas−me graciosamente os
brancos dentes, e os teus malvados
olhos asseteavam−me por entre as
frisadas madeixas.
Que correria por montes e vales! Eu sou
o caçador; queres tu ser o meu cão?
Agora, a meu lado! e depressa,
invejável solitária! Acima agora! Ó! Ao
voltar, cai. Olha como estou aqui
estendido! Olha, altaneira, como imploro
o teu socorro! Quereria continuar
contigo... por caminhos mais
agradáveis! pelos caminhos do amor,
através de esmaltados ou pelos que
marginam o lago, onde nadam e saltam
dourados peixes! Estás cansada,
agora? Ali em baixo há ovelhas e
vespertinos arrebóis. Não é tão bom
adormecer ao som da flauta dos
pastores?
Então, estás assim cansada? Vou−te
levar lá; ao menos deixa pender os
braços. E tens sede?... Poderia dar−te
qualquer coisa...Mas a tua boca não
quer beber.
Que maldita serpente esta, feiticeira
fugidia, veloz e ágil. Aonde te meteste?
Sinto na cara dois sinais da tua mão,
dois sinais vermelhos!
Estou deveras farto de te seguir sempre
como ingênuo cordeirinho! Feiticeira, até
agora cantei para ti: agora, para mim
deves tu... gritar! Deves dançar e gritar
ao compasso de meu látego!
Esquecê−lo−ia eu? Não!"
II
Eis o que então respondeu a vida,
tapando os delicados ouvidos:
"Ó! Zaratustra! Não vibres tão
espantosamente o látego? Bem sabes
que o ruído assassina os
pensamentos... e assaltam−me agora
pensamentos tão ternos!
Nós não somos bons nem maus para
nada! Além do bem e do mal
encontramos a nossa ilha e o nosso
verde prado: só nos dois o
encontramos! Por isso nos devemos
amar um ao outro!
E conquanto nos não amemos de todo o
coração, será caso para nos
enfadarmos? Enfadam−se as pessoas
por não se amarem de todo o coração?
É que eu te amo, te amo muitas vezes
com excesso, sabei−o demais, a razão
é que estou ciosa da tua sabedoria. Ah,
que velha louca é a sabedoria!
Se alguma vez a tua sabedoria te
deixasse, também logo o meu amor te
deixaria".
Então a vida olhou pensativa para trás e
em torno de si, e disse em voz baixa:
"Ó, Zaratustra não me és bastante fiel!
Ainda falta muito para me teres o amor
que dizes; sei que pensas deixar−me
breve.
Há um velho bordão pesado
pesadíssimo, que ressoa de noite até lá
acima, à tua caverna; quando ouves
esse sino dar a meia−noite, pensas −
bem o sei, Zaratustra − pensas
deixar−me breve!".
"Assim é,,, respondi titubeando, "mas tu
também sabes..." E disse−lhe uma coisa
ao ouvido colado à sua emaranhada
cabeleira, às suas douradas e
revoltadas madeixas.
"Tu sabes isso, Zaratustra? Ninguém
sabe isso..." Olhamo−nos, e dirigimos o
nosso olhar para o verde prado por
onde corria a frescura da tarde, e
choramos juntos. Mas então a vida era
para mim mais cara do que jamais o foi
toda minha sabedoria".
Assim falou Zaratustra
* Há 109 anos, Nietzsche partia com a indesejada das gentes.
19/08/2009
Interlúdio do Papangústia
Não, não é.
Será que quando vir a se ser, será?
Vai-te, que me fico no vão!
No delírio oco do meu não
É que teu sim entra assim:
Por um ouvido e sai pelo outro,
Olvido.
17/08/2009
Escrever e ler: uma reflexão
foi um dos piores males do homem,
já que tendeu a multiplicar até a vertigem
textos desnecessários."
Jorge Luis Borges
Há algumas semanas, a sociedade brasileira presenciou uma verdadeira vertigem de publicações e leituras sobre a extinção da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo. Não quero, neste breve ensaio, falar do assunto em específico, nem tampouco lançar mais uma opinião nesse vasto e vertiginoso mercado de opiniões.
A mim, particularmente, pouco importa se o diploma será ou não obrigatório. A decisão do STF, a meu ver, lança um outro debate, que está plenamente ausente de todos os textos publicados no seio do burburinho da recente decisão jurídica.
Duas questões se colocam em evidência, e se fazem necessárias de reflexão:
1 – Qual a necessidade de se publicar/ler tanto?
2 – Não estaria a imprensa, com suas repetições seriadas de notícias, publicando para o esquecimento?
Não pretendo responder as questões acima de forma cabal. Apenas lançar direções de reflexão. A primeira questão traz à tona não apenas as publicações de textos jornalísticos. Mas também de artigos e periódicos acadêmicos. Aqui, a questão é: o que de fato é fundamental e o que é trivial no mundo das publicações?
A sociedade contemporânea fundou uma entidade etérea chamada Lattes. Nesta plataforma, pode-se dizer que quem publica mais está na frente. Existem também os sistemas fantasmagóricos das qualificações (Qualis). Tudo isto contribui, ao que me parece, para a publicação de trivialidades dispensáveis.
Questiono se, com a formatação dessas entidades ‘platônicas’, a obrigatoriedade de publicações periódicas dos pesquisadores estariam correspondendo às demandas da sociedade, ou apenas às demandas acadêmicas dos doutores?
Dessa forma, pergunto: não estariam nossos eméritos acadêmicos publicando apenas para satisfazer suas necessidades de créditos e pontuações nas plataformas platônicas?
Pode-se dizer mesmo que a finalidade dessas publicações não é o leitor – no sentido estrito da palavra. Criou-se um leitor-outro, leitor prévio, cuja função é apenas determinar a qualificação daquela publicação. Pouco importa se a “obra” será lida no seio da sociedade. O que importa é estar publicada. Constar como. Assim, a publicação se torna trivial. Desnecessária. Já que tais textos não são escritos para serem lidos.
Evidentemente, essa “regra” também é passível de suas exceções. Então, o que proponho como alvo de reflexão é a necessidade de saber distinguir o que é fundamental e o que é trivial – levando em conta suas nuances.
É preciso estar atento quando uma publicação tem apenas um mero valor de troca curricular do acadêmico, de quando a publicação se torna uma leitura imprescindível à sociedade. A publicação cuja única virtude é o valor curricular, não passa de uma mercadoria com valor estritamente virtual.
Cito trecho do conto Utopia de um homem que está cansado, de Jorge Luis Borges, na tentativa de rechear minhas ensaísticas reflexões para esta questão, que poderia ir muito além, e mais ainda:
“Em meu curioso ontem – respondi – prevalecia a superstição de que cada tarde e cada manhã ocorrem fatos que é uma vergonha ignorar. O planeta estava povoado de espectros coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum. Quase ninguém sabia a história anterior desses entes platônicos, ma sim os mais ínfimos pormenores do último congresso de pedagogos, a iminente ruptura de relações mensagens que os presidentes mandavam, elaboradas pelo secretário do secretário com a prudente imprecisão que era própria do gênero.”
Há que se distinguir entre o que é trivial e o que é fundamental. Entre o que tem valor meramente de mercadoria, e o que tem valor humanístico e social.
Concluo, provisoriamente, que é preciso não deixar cair nos calabouços da inteligência as perspectivas históricas, os tempos de reflexão e o entendimento profundo daquilo que se lê, das fundamentações dos problemas, sua importância para o desenvolvimento da sociedade humana, e não para o mero preenchimento do Lattes.
A segunda questão está vinculada com as atividades jornalísticas. Também para ela, Borges nos servirá de guia. Mais que responder, gostaria de perguntar.
Observa-se facilmente que os jornais repetem interminavelmente as mesmas notícias. Aliás, essa é a finalidade das “agências de notícias”: distribuir ao mundo seus pequenos textos para que sejam reproduzidos vasta e vertiginosamente.
Logo que são publicadas, essas informações são surrupiadas por outras, dia a dia, minuto a minuto, num movimento estanque realmente vertiginoso de apagamento e escrituração, onde uma tem como função apagar a outra.
Tal movimento é comparável ao paradoxo de Zenão de Eléia.
Neste, segundo palavras do próprio Borges, “uma flecha não pode chegar a sua meta porque antes tem que passar por um ponto intermediário, antes por outro ponto intermediário, e assim sucessivamente temos um número infinito de pontos onde a flecha em cada momento está imóvel no ar, e somando imobilidades não se chega nunca ao movimento.”
Assim, é como se os jornais (e também textos acadêmicos) escrevessem para o esquecimento.
Walter Benjamin escreveu que a utilidade da “literatura jornalística” é precária, já que em um dia se lê, e no outro dia, aquele suporte de papel serve apenas para embrulhar peixe. Nos dias de hoje, poder-se-ia dizer que servem para outras coisas, como para animais domésticos fazerem suas necessidades fisiológicas.
As matizes do pensamento educacional costumam dizer: “leiam, leiam tudo e de tudo”. Parece que esqueceram (se é que souberam um dia!) dos benefícios da releitura, da leitura cuidadosa, analítica, crítica, aprofundada.
Mas, quem há de reler notícias? Sua finalidade é ser lida uma vez, e só. Sua meta, como no paradoxo, é a ausência de metas – muito embora a meta mercadológica seja latente; mas não é sobre ela que escrevo.
Não há pra quê ficar lendo e relendo uma nota, um notícia-pílula. É pura perda de tempo, num mundo onde o tempo é raro.
“Leia. Quanto mais você ler, melhor.”
Pergunto: será mesmo? Aplicando essa prática, será que estamos lendo de verdade? Quantos desses textos que lemos diáriamente são de fato necessários, fundamentais? E são necessários pra quem/pra quê? Quantos desses nos dá desejo de reler?
É necessário pra você, ou apenas para que os jornais vendam, e acadêmicos preencham suas plataformas virtuais curriculares?
Em outro trecho do mesmo conto, Borges escreve o seguinte, narrando um diálogo entre um homem do século XX e outro de quatro séculos depois. Neste diálogo pode-se confrontar duas distintas épocas, pelo princípio do estranhamento – tão caro à literatura fantástica de Borges.
Leiam – e releiam, se possível.
“Este me disse:
- Agora verás algo que nunca viste.
Estendeu-me um exemplar da Utopia de More, impresso em Basiléia no ano de 1518 e no qual faltavam algumas folhas e lâminas.
Não sem fatuidade, repliquei:
- É um livro impresso. Em minha casa haverá mais de dois mil, embora não tão antigos nem tão preciosos.
Li em voz alta o título.
O outro riu.
- Ninguém pode ler dois mil livros. Nos quatro séculos que vivo não terei passado de uma meia dúzia. Além disso, não importa ler, senão reler. A imprensa, agora abolida foi um dos piores males do homem, já que tendeu a multiplicar até a vertigem textos desnecessários.”
O estranhamento acima choca frontalmente com nossas práticas de leitura e escrita, em demasia e com pouco cuidado, quando não totalmente inúteis.
Faz-se necessário refletir não apenas sobre a obrigatoriedade ou não diploma para jornalistas, mas também sobre sua própria necessidade enquanto agente das humanidades, levando em consideração os limites entre o fútil e o relevante em suas produções.
Não se trata, aqui, de repetir outro enunciado vertiginoso e cansado, aquele de que os jornalões estão com seus dias contados. Acho que isso é outra bobagem. Trata-se de refletir sobre a própria natureza dessas leituras e publicações.
Também a academia deve se propor a fugir da mera prática de saciar a sede insaciável do Lattes. Não foi o sentido mercadólógico que fundou a Universidade em séculos passados. Direcioná-la ao mercado não é o problema da questão. O problema é que outra coisa está tomando o lugar da Universidade, usando perniciosamente de seu título, de sua “marca”, o mesmo nome, e isto é um engano, um grave problema, que devemos estar atentos.
A tendência mercadológica cria outra coisa, e mereceria ganhar outro nome, para salvaguardar a excelência da palavra Universidade. Como disse, o problema não é direcionar a produção acadêmica para o mercado, mas apropriar-se da grandeza de suas produções de outrora, sem que se distingua que a universidade de hoje está há milhas e milhas do que se entendia como tal em tempos idos.
Conviria criar um novo nome para esta nova coisa.
“Tudo isto de lia para o esquecimento, porque em poucas horas o apagariam outras trivialidades. De todas as funções, a do político era, sem dúvida, a mais pública. Um embaixador ou um ministro era uma espécie de aleijado que era preciso transportar em grandes e ruidosos veículos, cercado de ciclistas e granadeiros e aguardado por ansiosos fotógrafos. Parece que lhes cortaram os pés, costumava dizer minha mãe. As imagens e a letra impressa eram mais reais do que as coisas. Só o publicado era verdadeiro. Esse est percipi (ser é ser retratado) era o princípio, o meio e o fim de nosso singular conceito do mundo. No ontem que me tocou, as pessoas eram ingênuas; acreditavam que uma mercadoria era boa porque assim o afirmavam e repetia seu próprio fabricante. Também eram freqüentes os roubos, embora ninguém ignorasse que a posse do dinheiro não dá maior felicidade nem maior tranqüilidade.”
Jorge Luis Borges
Utopia de um homem que está cansado,
in: O Livro de Areia.
Pergunte a si mesmo, no mais denso silêncio de sua madrugada: "quantos textos realmente significativos li em minha vida?"
11/08/2009
Lampião à luz de Pierre Bordieu
Neste post pretendo aproximar os dois. Não será um ensaio interligando a biografia deles, claro. Mas, tentando analisar como poderíamos direcionar o olhar para a figura de Lampião sob uma perspectiva desenvolvida por Bourdieu no esteio de alguns conceitos seus.
(Caso queiram, leiam mais sobre Bourdieu clicando aqui e aqui).
Em primeiro lugar, é preciso dizer que para Bourdieu o poder simbólico é um elemento fundamental dentro da nossa sociedade contemporânea, no que tange aos elementos de dominação e conservação do status quo vigente. Esse poder simbólico aparece como um mecanismo de imposição de significações aos símbolos, bem como um elemento de legitimação da ordem estabelecida. Em segundo lugar, precisamos reconhecer que nossos hábitos e ferramentas de atuação dentro da sociedade estão embebidos de elementos simbólicos.
O habitus, conceito fundamental para compreensão da obra de Bourdieu, seria uma força ‘congelante’ que nos mantém habituados com nossos estilos de vida, nossas verdades, contribuindo fortemente como elemento conservador da ordem social. Em terceiro lugar, é necessário entender de que forma os grandes veículos de comunicação contribuem para a manutenção e difusão do poder simbólico.
Esses conceitos muito bem definidos ao longo das obras de Bourdieu são extremamente importantes para pensarmos a sociedade em que vivemos: tanto para refletir sobre os mecanismos de dominação política ao qual estamos sujeitos, quanto para raciocinar de que maneiras estamos habituados com a proliferação de verdades no campo sócio-cultural da sociedades que vivemos. Por fim, de que forma esses elementos conceituais poderíam nos ajudar a revirar do avesso o status quo que legitimamos muitas vezes sem perceber – por estarmos crentes de que nossos símbolos possuem estatuto de verdades incontestáveis.
Lampião: Rei do Cangaço e herói marketeiro?
O caso de Lampião é particularmente interessante para nós pensarmos de que forma atuam em nossa sociedade as forças que legitimam as significações de nossos símbolos. O fato de ter completado 70 anos de sua morte é significativo, pois nossos veículos de comunicação estão transbordando de matérias sobre o cangaceiro durante esta semana.
Pensemos os grandes veículos de comunicação como verdadeiras fábricas de rostos e significados. Não foram poucas as transformações produzidas nas feições do rosto de Lampião (ou seria, dos Lampiões?) e dos cangaceiros, nas décadas subseqüentes à sua morte.
Basta fecharmos os olhos para saltar à nossa mente algumas imagens bem ou mal definidas de um Lampião que é Rei do Cangaço, de um Lampião Justiceiro, de um Lampião ‘Caba da Peste’ que usa chapéu de couro, porta espingarda em uma das mãos, peixeira na outra e é valente. De um Lampião revolucionário, engajado em causas sociais, um Lampião quase-comunista que usurpava os ricos para abonar os pobres, ou, por último, de um lampião que não passa de um objeto para iluminar ambientes.
As re-presentações desses símbolos são de tantas formas que não sabemos em qual delas acreditar! Essa cadeia produtiva forma uma espécie de camada sedimentar subterrânea que abriga os conteúdos imagéticos de várias épocas. “Peguemos, para estarmos com o bom senso, um pouco de cada?…” Dessa forma ainda buscamos estabelecer arquétipos entre os sedimentos de informação simbólica.
Muitas mídias juntas compuseram em harmonia ou desarranjo (ainda que não soubessem disso) as imagens de Lampião e do Cangaço. As pinturas de Portinari, os cordéis, o cinema de Glauber Rocha, a fotografia, a televisão, os jornais, enfim, toda uma rede de produção começa a operar como uma engrenagem subterrânea, uma máquina invisível de fabricação e difusão desses símbolos. Aqueles que têm a posse dos meios de produção e re-produção de informações simbólicas (ou seja, os que mantêm condições capitais mínimas para produção de arte e de informação) são os operários dessa fábrica de imagens do Cangaço.
Vejamos dois exemplos bastante conhecidos dos rostos de Lampião e, por extensão, dos cangaceiros:
Tenho a impressão que paira no ar certa idéia dessa produção como uma conseqüência da realidade – em uma palavra, um reflexo da própria verdade. Talvez estejamos enganados. Perpassa, nas estruturas do saber (jornais, revistas e mesmo artigos acadêmicos), certo conceito de que Lampião teria sido uma espécie de astuto marketeiro, por supostamente saber se utilizar dos veículos de comunicação (jornais e fotografias) para propalar suas idéias, suas intenções e sua imagem.
No entanto, se revirarmos o subsolo das coisas, veremos que há outras coisas lá em baixo…, ainda mais significantes que as coisas de cima. Esses significantes são o que dão significados às coisas – às imagens. Sem uma história, uma coisa não significa nada. Isso que se costuma chamar “conseqüência”, eu chamarei de “causa”, operando uma inversão da ordem das coisas. Penso que fazendo isso, poderemos compreender melhor como se processou a fabricação das imagens de Lampião e do Cangaço ao longo do século XX.
Vejamos: costuma-se difundir essa idéia de quê Lampião sabia (à sua maneira), manipular com habilidade os veículos de comunicação em pró de seus interesses. Há quem costume acreditar nesse mito como uma verdade inconteste. Mas, será que é tão incontestável assim? Ou será que são os veículos de comunicação que o utilizam para seus interesses particulares?
Precisamos compreender também que a exibição das cabeças dos cangaceiros mortos em Angicos (foto abaixo), da forma “espetacular” como aconteceu, foi mais uma forma de maquiar a realidade. A idéia de quê o cangaço acabou ali é uma inverdade. O cangaceiro Corisco, por exemplo, continuou na ativa por certo tempo. Além disso, é como se difundisse uma imagem de que o sertão estava redimido pelas forças do governo getulista do Estado Novo.
Não apenas acho contestável como também um pensamento equivocado, acreditar nessa idéia de um Nordeste redimido e livre da figura assombrava que foi Lampião, um cangaceiro que supostamente manobrava a Imprensa de acordo com seus interesses. O único objetivo dessa idéia é manter a ordem estabelecida no campo simbólico do nosso pensamento. É preciso revirar a ordem das coisas. Revolver a terra. Subeverter as imagens que temos dentro de nós. Mantê-las é um gesto passivo e conservador que, acredito, devemos evitar.
As mutações do rosto de Lampião
Desde a década de 1930 que a imagem de Lampião é estampada em jornais e revistas. Suas aparições, certamente se deram de muitas formas diferentes, desde o Rei do Cangaço, o homem que atemoriza as regiões nordestinas, cruel e sem alma, aliado das forças atrasadas dos grandes coronéis, logo, repulsivo, símbolo do subdesenvolvimento do país. Em outras significações, vemos uma espécie de pastiche de Robin Hood, quase comunista, justo e honrado, defensor dos pobres e oprimidos.
Ultimamente, parece que alguma coisa está acontecendo com Lampião, aliás, com Lampião não, mas com o que se inventa de sua imagem. É como se o cangaceiro viesse aos poucos ganhando certo charme, certo refinamento e glamour, bebendo whisky e, dessa maneira, abandonando seu estado de barbárie e ganhando status de civilidade…
Estamos assistindo durante todo este mês “comemorativo” (o ensaio foi escrito originalmente quando dos 70 anos da morte de Lampião, em 2008) a re-produção da mais nova idéia de Lampião: um sujeito “antenado” com a moda, criativo e, até mesmo, ditador de tendências. Isso tudo chega a ser tão assombroso que forma uma espécie de sedimentação no rosto e nos significados de Lampião e do cangaço.
É como se ao longo do tempo fossem sendo sobrepostos tantos estereótipos, tantas máscaras, que sua rostidade se desfigura, tornando-se uma espécie de Michael Jackson do banditismo social e do mundo pop, ou seja, uma aberração simbólica que adquiri significações tão díspares entre si, que ele (Lampião) já nem existe mais, a não ser como força simbólica, estética, ressignificável a cada instante, em uma palavra, um subjeto de apropriação aleatória pelos grandes veículos de comunicação.
Conclusão inconclusa
Os implicativos desse gesto de artificialização de sua imagem é algo que devemos nos ater. É preciso compreender que todas essas superposições imagéticas criam um estado de coisas tão repulsivo, que essa aparente “transformação” de sua imagem não passa de um ledo engano. Uma mentira desvalada que tem por objetivo mascarar a realidade dos distúrbios sociais dos Brasil de outros tempos. Por outro lado, é como se matasse dois coelhos com uma cajadada só: elimina-se de uma vez nossa compreensão histórica do Brasil das décadas de 1920-30, jogando poeira em nossos olhos, além de folclorificar sua imagem, conservando assim o estado pseudonatural das coisas.
É contra essa naturalização das coisas que deve se dirigir nosso olhar. Temos de ter muito cuidado com a propagação e conservação dos nossos símbolos. Revira-los do avesso é um exercício bastante saudável, embora doloroso. Antes de crivar a culpa em nossos grandes veículos de comunicação, precisamos também olhar para nós mesmos, nossas crenças, desejos e demandas. Precisamos reconhecer que o combustível dessa fábrica de imagens também é o nosso desejo, inconsciente ou não, de imprimir rostos e paisagens.
É também a partir dessa motivação que nossos artífices-criadores de imagens trabalham, sabendo ou não desse processo. E, nós, muitas vezes figuramos como meros consumidores de informações e imagens, sem nos darmos conta que também somos responsáveis por sua produção e re-produção.
10/08/2009
Operação Pandemia: a 'Griphe' Suína
O vídeo acima é um documentário sobre a gripe suína, que aponta para uma visão alternativa da tradicional paranóia coletiva difundida pelos grandes veículos de comunicação.
O documentário, de pouco menos de 10 minutos, foi produzido pelo argentino Julián Alterini.
Se você é mais um paranóico com a tal griphe suína, e não sabe que a gripe tradicional mata muito mais, você precisa assistir esse vídeo com urgência.