25/08/2009

Zaratustra no Outro Canto do Baile

"O Outro canto do Baile"

I

"Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi
reluzir outro nos teus olhos noturnos, e
essa voluptuosidade paralisou−me o
coração: vi brilhar uma barca dourada
que se submergia em águas noturnas,
uma barca dourada que se submergia e
reaparecia fazendo sinais!

Tu dirigias um olhar aos meus pés,
doidos por dançar, um olhar acariciador,
terno, risonho e interrogador.

Duas vezes apenas agitaste com as
mãos as tuas castanholas, e já os pés
me pulavam, ébrios.

Os calcanhares erguiam−se; os dedos
escutavam para te compreender; não
tem o dançarino os ouvidos nos dedos
dos pés?

Saltei ao teu encontro; tu retrocedeste
ao meu impulso, e até a mim serpeava a
tua voadora e fugidia cabeleira.

Num pulo me afastei de ti e das tuas
serpentes: já tu te erguias com os olhos
cheios de desejos.

Com lânguidos olhares me mostras
sendas tortuosas; por tortuosas sendas
aprende astúcias o meu pé.

Receio−te quando te aproximas, amo−te
quando estás longe; a tua fuga

atrai−me; as tuas diligências detêm−me.
Sofro; mas, por ti, que não sofreria eu?
Ó, tu cuja frialdade incendeia, cujo ódio
seduz, cuja fuga prende, cujos enganos
comovem!

Quem te não odiará, grande carcereira,
sedutora, esquadrinhadora e
descobridora! Quem te não amará,
inocente, impaciente, arrebatadora
pecadora de olhos infantis!

Aonde me arrastas agora, indômito
prodígio? E já me tornas a fugir, doce
esquiva, doce ingrata!

Dançando sigo as tuas menores
pisadas. Onde estás? Dá−me a mão!
Ou um dedo sequer!

Há por aí cavernas e bosques;
extraviar−nos−emos. Pára! Detém−te!
Não vês revoarem corujas e morcegos?
Eh! lá, coruja! Morcego! Quereis brincar
comigo? Onde estamos? Com os cães
aprendestes a uivar e a rosnar.

Mostravas−me graciosamente os
brancos dentes, e os teus malvados
olhos asseteavam−me por entre as
frisadas madeixas.

Que correria por montes e vales! Eu sou
o caçador; queres tu ser o meu cão?
Agora, a meu lado! e depressa,
invejável solitária! Acima agora! Ó! Ao
voltar, cai. Olha como estou aqui
estendido! Olha, altaneira, como imploro
o teu socorro! Quereria continuar
contigo... por caminhos mais
agradáveis! pelos caminhos do amor,

através de esmaltados ou pelos que
marginam o lago, onde nadam e saltam
dourados peixes! Estás cansada,
agora? Ali em baixo há ovelhas e
vespertinos arrebóis. Não é tão bom
adormecer ao som da flauta dos
pastores?

Então, estás assim cansada? Vou−te
levar lá; ao menos deixa pender os
braços. E tens sede?... Poderia dar−te
qualquer coisa...Mas a tua boca não
quer beber.

Que maldita serpente esta, feiticeira
fugidia, veloz e ágil. Aonde te meteste?
Sinto na cara dois sinais da tua mão,
dois sinais vermelhos!

Estou deveras farto de te seguir sempre
como ingênuo cordeirinho! Feiticeira, até
agora cantei para ti: agora, para mim
deves tu... gritar! Deves dançar e gritar
ao compasso de meu látego!

Esquecê−lo−ia eu? Não!"

II

Eis o que então respondeu a vida,
tapando os delicados ouvidos:
"Ó! Zaratustra! Não vibres tão
espantosamente o látego? Bem sabes
que o ruído assassina os
pensamentos... e assaltam−me agora
pensamentos tão ternos!

Nós não somos bons nem maus para
nada! Além do bem e do mal
encontramos a nossa ilha e o nosso
verde prado: só nos dois o
encontramos! Por isso nos devemos
amar um ao outro!

E conquanto nos não amemos de todo o
coração, será caso para nos
enfadarmos? Enfadam−se as pessoas
por não se amarem de todo o coração?
É que eu te amo, te amo muitas vezes
com excesso, sabei−o demais, a razão
é que estou ciosa da tua sabedoria. Ah,
que velha louca é a sabedoria!

Se alguma vez a tua sabedoria te
deixasse, também logo o meu amor te
deixaria".

Então a vida olhou pensativa para trás e
em torno de si, e disse em voz baixa:
"Ó, Zaratustra não me és bastante fiel!
Ainda falta muito para me teres o amor
que dizes; sei que pensas deixar−me
breve.

Há um velho bordão pesado
pesadíssimo, que ressoa de noite até lá
acima, à tua caverna; quando ouves
esse sino dar a meia−noite, pensas −
bem o sei, Zaratustra − pensas
deixar−me breve!".

"Assim é,,, respondi titubeando, "mas tu
também sabes..." E disse−lhe uma coisa
ao ouvido colado à sua emaranhada
cabeleira, às suas douradas e
revoltadas madeixas.

"Tu sabes isso, Zaratustra? Ninguém
sabe isso..." Olhamo−nos, e dirigimos o
nosso olhar para o verde prado por
onde corria a frescura da tarde, e
choramos juntos. Mas então a vida era
para mim mais cara do que jamais o foi
toda minha sabedoria".

Assim falou Zaratustra
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* Há 109 anos, Nietzsche partia com a indesejada das gentes.

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