foi um dos piores males do homem,
já que tendeu a multiplicar até a vertigem
textos desnecessários."
Jorge Luis Borges
Há algumas semanas, a sociedade brasileira presenciou uma verdadeira vertigem de publicações e leituras sobre a extinção da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo. Não quero, neste breve ensaio, falar do assunto em específico, nem tampouco lançar mais uma opinião nesse vasto e vertiginoso mercado de opiniões.
A mim, particularmente, pouco importa se o diploma será ou não obrigatório. A decisão do STF, a meu ver, lança um outro debate, que está plenamente ausente de todos os textos publicados no seio do burburinho da recente decisão jurídica.
Duas questões se colocam em evidência, e se fazem necessárias de reflexão:
1 – Qual a necessidade de se publicar/ler tanto?
2 – Não estaria a imprensa, com suas repetições seriadas de notícias, publicando para o esquecimento?
Não pretendo responder as questões acima de forma cabal. Apenas lançar direções de reflexão. A primeira questão traz à tona não apenas as publicações de textos jornalísticos. Mas também de artigos e periódicos acadêmicos. Aqui, a questão é: o que de fato é fundamental e o que é trivial no mundo das publicações?
A sociedade contemporânea fundou uma entidade etérea chamada Lattes. Nesta plataforma, pode-se dizer que quem publica mais está na frente. Existem também os sistemas fantasmagóricos das qualificações (Qualis). Tudo isto contribui, ao que me parece, para a publicação de trivialidades dispensáveis.
Questiono se, com a formatação dessas entidades ‘platônicas’, a obrigatoriedade de publicações periódicas dos pesquisadores estariam correspondendo às demandas da sociedade, ou apenas às demandas acadêmicas dos doutores?
Dessa forma, pergunto: não estariam nossos eméritos acadêmicos publicando apenas para satisfazer suas necessidades de créditos e pontuações nas plataformas platônicas?
Pode-se dizer mesmo que a finalidade dessas publicações não é o leitor – no sentido estrito da palavra. Criou-se um leitor-outro, leitor prévio, cuja função é apenas determinar a qualificação daquela publicação. Pouco importa se a “obra” será lida no seio da sociedade. O que importa é estar publicada. Constar como. Assim, a publicação se torna trivial. Desnecessária. Já que tais textos não são escritos para serem lidos.
Evidentemente, essa “regra” também é passível de suas exceções. Então, o que proponho como alvo de reflexão é a necessidade de saber distinguir o que é fundamental e o que é trivial – levando em conta suas nuances.
É preciso estar atento quando uma publicação tem apenas um mero valor de troca curricular do acadêmico, de quando a publicação se torna uma leitura imprescindível à sociedade. A publicação cuja única virtude é o valor curricular, não passa de uma mercadoria com valor estritamente virtual.
Cito trecho do conto Utopia de um homem que está cansado, de Jorge Luis Borges, na tentativa de rechear minhas ensaísticas reflexões para esta questão, que poderia ir muito além, e mais ainda:
“Em meu curioso ontem – respondi – prevalecia a superstição de que cada tarde e cada manhã ocorrem fatos que é uma vergonha ignorar. O planeta estava povoado de espectros coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum. Quase ninguém sabia a história anterior desses entes platônicos, ma sim os mais ínfimos pormenores do último congresso de pedagogos, a iminente ruptura de relações mensagens que os presidentes mandavam, elaboradas pelo secretário do secretário com a prudente imprecisão que era própria do gênero.”
Há que se distinguir entre o que é trivial e o que é fundamental. Entre o que tem valor meramente de mercadoria, e o que tem valor humanístico e social.
Concluo, provisoriamente, que é preciso não deixar cair nos calabouços da inteligência as perspectivas históricas, os tempos de reflexão e o entendimento profundo daquilo que se lê, das fundamentações dos problemas, sua importância para o desenvolvimento da sociedade humana, e não para o mero preenchimento do Lattes.
A segunda questão está vinculada com as atividades jornalísticas. Também para ela, Borges nos servirá de guia. Mais que responder, gostaria de perguntar.
Observa-se facilmente que os jornais repetem interminavelmente as mesmas notícias. Aliás, essa é a finalidade das “agências de notícias”: distribuir ao mundo seus pequenos textos para que sejam reproduzidos vasta e vertiginosamente.
Logo que são publicadas, essas informações são surrupiadas por outras, dia a dia, minuto a minuto, num movimento estanque realmente vertiginoso de apagamento e escrituração, onde uma tem como função apagar a outra.
Tal movimento é comparável ao paradoxo de Zenão de Eléia.
Neste, segundo palavras do próprio Borges, “uma flecha não pode chegar a sua meta porque antes tem que passar por um ponto intermediário, antes por outro ponto intermediário, e assim sucessivamente temos um número infinito de pontos onde a flecha em cada momento está imóvel no ar, e somando imobilidades não se chega nunca ao movimento.”
Assim, é como se os jornais (e também textos acadêmicos) escrevessem para o esquecimento.
Walter Benjamin escreveu que a utilidade da “literatura jornalística” é precária, já que em um dia se lê, e no outro dia, aquele suporte de papel serve apenas para embrulhar peixe. Nos dias de hoje, poder-se-ia dizer que servem para outras coisas, como para animais domésticos fazerem suas necessidades fisiológicas.
As matizes do pensamento educacional costumam dizer: “leiam, leiam tudo e de tudo”. Parece que esqueceram (se é que souberam um dia!) dos benefícios da releitura, da leitura cuidadosa, analítica, crítica, aprofundada.
Mas, quem há de reler notícias? Sua finalidade é ser lida uma vez, e só. Sua meta, como no paradoxo, é a ausência de metas – muito embora a meta mercadológica seja latente; mas não é sobre ela que escrevo.
Não há pra quê ficar lendo e relendo uma nota, um notícia-pílula. É pura perda de tempo, num mundo onde o tempo é raro.
“Leia. Quanto mais você ler, melhor.”
Pergunto: será mesmo? Aplicando essa prática, será que estamos lendo de verdade? Quantos desses textos que lemos diáriamente são de fato necessários, fundamentais? E são necessários pra quem/pra quê? Quantos desses nos dá desejo de reler?
É necessário pra você, ou apenas para que os jornais vendam, e acadêmicos preencham suas plataformas virtuais curriculares?
Em outro trecho do mesmo conto, Borges escreve o seguinte, narrando um diálogo entre um homem do século XX e outro de quatro séculos depois. Neste diálogo pode-se confrontar duas distintas épocas, pelo princípio do estranhamento – tão caro à literatura fantástica de Borges.
Leiam – e releiam, se possível.
“Este me disse:
- Agora verás algo que nunca viste.
Estendeu-me um exemplar da Utopia de More, impresso em Basiléia no ano de 1518 e no qual faltavam algumas folhas e lâminas.
Não sem fatuidade, repliquei:
- É um livro impresso. Em minha casa haverá mais de dois mil, embora não tão antigos nem tão preciosos.
Li em voz alta o título.
O outro riu.
- Ninguém pode ler dois mil livros. Nos quatro séculos que vivo não terei passado de uma meia dúzia. Além disso, não importa ler, senão reler. A imprensa, agora abolida foi um dos piores males do homem, já que tendeu a multiplicar até a vertigem textos desnecessários.”
O estranhamento acima choca frontalmente com nossas práticas de leitura e escrita, em demasia e com pouco cuidado, quando não totalmente inúteis.
Faz-se necessário refletir não apenas sobre a obrigatoriedade ou não diploma para jornalistas, mas também sobre sua própria necessidade enquanto agente das humanidades, levando em consideração os limites entre o fútil e o relevante em suas produções.
Não se trata, aqui, de repetir outro enunciado vertiginoso e cansado, aquele de que os jornalões estão com seus dias contados. Acho que isso é outra bobagem. Trata-se de refletir sobre a própria natureza dessas leituras e publicações.
Também a academia deve se propor a fugir da mera prática de saciar a sede insaciável do Lattes. Não foi o sentido mercadólógico que fundou a Universidade em séculos passados. Direcioná-la ao mercado não é o problema da questão. O problema é que outra coisa está tomando o lugar da Universidade, usando perniciosamente de seu título, de sua “marca”, o mesmo nome, e isto é um engano, um grave problema, que devemos estar atentos.
A tendência mercadológica cria outra coisa, e mereceria ganhar outro nome, para salvaguardar a excelência da palavra Universidade. Como disse, o problema não é direcionar a produção acadêmica para o mercado, mas apropriar-se da grandeza de suas produções de outrora, sem que se distingua que a universidade de hoje está há milhas e milhas do que se entendia como tal em tempos idos.
Conviria criar um novo nome para esta nova coisa.
“Tudo isto de lia para o esquecimento, porque em poucas horas o apagariam outras trivialidades. De todas as funções, a do político era, sem dúvida, a mais pública. Um embaixador ou um ministro era uma espécie de aleijado que era preciso transportar em grandes e ruidosos veículos, cercado de ciclistas e granadeiros e aguardado por ansiosos fotógrafos. Parece que lhes cortaram os pés, costumava dizer minha mãe. As imagens e a letra impressa eram mais reais do que as coisas. Só o publicado era verdadeiro. Esse est percipi (ser é ser retratado) era o princípio, o meio e o fim de nosso singular conceito do mundo. No ontem que me tocou, as pessoas eram ingênuas; acreditavam que uma mercadoria era boa porque assim o afirmavam e repetia seu próprio fabricante. Também eram freqüentes os roubos, embora ninguém ignorasse que a posse do dinheiro não dá maior felicidade nem maior tranqüilidade.”
Jorge Luis Borges
Utopia de um homem que está cansado,
in: O Livro de Areia.
Pergunte a si mesmo, no mais denso silêncio de sua madrugada: "quantos textos realmente significativos li em minha vida?"
6 comentários:
hoje a madrugada chegou mais cedo por aqui.
Raboni, aprecio imensamente suas palavras e me sinto parte dessa tua opinião. Parabéns pela escrita e coerência. Esse teu texto era pra ser colado na porta dos jornais, meu caro. Abraço!
Brother... incrível como os tiros de sua metralhadora intelectual acertam em todos que leem sua reflexão. Assino embaixo meu nome completo, meus "eus" ficcionais, alter-egos e todos que sou, fui e serei. Contudo, se entrarmos um pouco mais fundo iremos chegar na crise da existência e perguntar: "Estudar, ler... o quê? Pra quê? Tudo é inútil. A literatura, o conhecimento, a arte, a ciência. Não passa de nada. O ser, o nada, a filosofia, a metafísica, tudo é nada" Traduzindo... "Motô, pode parar. Nesse ponto aqui eu desço. Valeu!"
Faço minhas as suas palavras. Muitas matérias são publicadas em jornais, com o intuito apenas de constarem, e depois serem arquivadas. Não há uma real necessidade para publicarem certos textos, e o que em minha opinião deveria ser prioridade, como: 'será que as pessoas se interessarão em ler isto?', torna-se algo dispensável. Com isso, triviais são publicados diariamente, e a 'qualidade' dos jornais entra pelo cano, e assim vamos diminuindo o número de leitores, na realidade, porque alguém que se preza não perderá tempo com triviais, com matérias, textos, dispensáveis, porque realmente são perda de tempo.
Sinceramente a nota que saiu no jornal falando que as pessoas não mais precisariam de diplomas para 'ingressarem' no meio jornalístico me aborreceu bastante. Afinal, muitos dedicam anos cursando uma faculdade de jornalismo, para terem esse bendito diploma, e agora 'qualquer um' poderá publicar 'o que bem quiser' nos jornais.
Aí está o problema, os triviais vêm sendo servidos à décadas, e por este motivo os jornais vão perdendo o seu público, trivial por trivial, encontramos em qualquer lugar. Outros meios como a televisão, o rádio, a internet, têm se mostrado 'eficazes', responsáveis, apesar da má qualidade em alguns aspectos, mas em quê iremos diferenciá-los então?
O que realmente deveria mudar, continua intacto.
Queria comentar um ponto específico...
No caso dos doutores, eles publicam sim para satisfazer a demanda da própria universidade, ou da exigência do MEC. Por exemplo, para que o curso de doutorado continue autorizado, é necessária uma periodicidade de publicações e de defesas de tese. Caso contrário, era uma vez o curso... Digo por experiência própria, pois vi um curso de doutorado aqui na Bahia prestes a sumir do mapa...
Talvez por isso existam tantas pesquisas inúteis por aí, para satisfazer essas demandas. Mas não há como negar que é fundamental que os doutores continuem publicando.
No caso de comunicação, por exemplo, temos publicado muito. Em RP, só perdemos para os EUA em produção bibliográfica. O problema mora na democratização dessas publicações, pois raríssimas viram livros para qualquer um do país poder comprar nas Saraivas da vida.
No mais... Ótimo blog, voltarei aqui mais vezes.
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