05/09/2009

Um pouco de Jorge Luis Borges

Em sua Literatura, Jorge Luis Borges mexeu com a realidade como quem rabisca garatujas no ar. Mas não qualquer garatuja, em sua acepção própria, dessas desordenadas e desconexas, pueris, casuais e horrendas. Pelo contrário, garatujas assombrosamente elaboradas, de construções tão complexas, finas e verossímeis, que, se levadas ao extremo, o leitor corre sério risco de não saber mais onde se assenta o real e onde se inicia o fantástico naquelas linhas.

Certamente a impressão de garatujas dos contos fantásticos de Borges se esvai quando o leitor entra em contato mais profundo e umbilical com tais construções, intragáveis ou incompreensíveis numa primeira vista. Uma outra sensação de mundo é experimentada. Outras dimensões, mais abrangentes, amplas, para tudo aquilo que os olhos parecem cegos.

A realidade outra, fantástica, que se apresenta diante dos olhos faz-se tão original, tão real, que a própria realidade se torna minúscula, e o fantástico palpável e palatável. E quem, depois de cruzar-se com Borges nos labirintos da existência, refletir-se em seus infinitos espelhos, perder-se entre os hexágonos da biblioteca de Babel, ousará dizer que não é?!

Gostaria de apresentar Borges aos leitores do Acerto de Contas. Certo é que se trata de uma vasta e difícil tarefa. Como fazer isso dizendo que ele nasceu em 24 de agosto de 1899, na cidade de Buenos Aires? Ou que este ano faria 110 anos? Ou, ainda, que adentrou as portas da infinitude em Genebra, no dia 14 de junho de 1986?

Isso não faz muito sentido. E, se acaso fizer algum sentido, aqui, não é tão importante quanto saborear suas próprias linhas. São elas que deixarei aos leitores.

Não correrei o risco de psicologizar vulgarmente o meu escritor preferido. Muito menos de biografá-lo pateticamente – ele que se autobiografou tão bem em tão poucas páginas.

Em vez dessas coisas triviais, exibo diante de vocês dois escritos de Borges.

Primeiro, The Unending Gift (que costumo traduzir como “O Presente Eterno”), onde os olhos miram o infinito das promessas, dos deuses, dos homens, dos presentes, terno e eterno.

Segundo, o conto que encerra um dos mais belos livros que já li em minha vida, até aqui. O conto se chama O Livro de Areia, extraído do livro que ostenta o mesmo belíssimo título.

A Jorge Luis Borges, dedico este post, simples e honesto, com a promessa de um dia fazê-lo com maior esmero.

*****

“THE UNENDING GIFT”

Um pintor prometeu-nos um quadro.
Agora, em New England, sei que morreu. Senti, como
outras vezes, a tristeza de compreender que somos como
um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)

Pensei em um lugar prefixado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo uma coisa
mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da
casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer
forma e qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma
Música e estará comigo até o fim. Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa
Há algo imortal.)

*****

“O LIVRO DE AREIA”


A linha consta de um número infinito de pontos, o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos, o hipervolume, de um número infinito de volumes… Não, decididamente não é este, more geométrico, o melhor modo de iniciar meu relato.

Afirmar que é verídico é, agora, uma convenção de todo relato fantástico; o meu, no entanto, é verídico.

Vivo só, num quarto andar da Rua Belgrano. Faz alguns meses, ao entardecer ouvi uma batida na porta. Abri e entrou um desconhecido. Era um homem alto, de traços mal conformados. Talvez minha miopia os visse assim. Todo seu aspecto era de uma pobreza decente. Estava de cinza e trazia uma valise cinza na mão. Logo senti que era estrangeiro. A princípio achei-o velho; logo percebi que seu escasso cabelo ruivo, quase branco, à maneira escandinava, me havia enganado. No decorrer de nossa conversa, que não duraria uma hora, soube que procedia das Orcadas.

Apontei-lhe uma cadeira. O homem demorou um pouco a falar. Exalava melancolia, como eu agora.

- Vendo bíblias – disse.

Não sem pedantismo respondi-lhe:

- Nesta casa há algumas bíblias inglesas, inclusive a primeira, a de John Wiclif. Tenho também a de Cipriano de Valera, a de Lutero, que literariamente é a pior, e um exemplar latino da Vulgata. Como o senhor vê, não são precisamente bíblias o que me falta.

Ao fim de um silêncio respondeu:

- Não vendo apenas bíblias. Posso mostrar-lhe um livro sagrado que talvez lhe interesse. Eu o adquiri nos confins de Bikanir.

Abriu a valise e o deixou sobre a mesa. Era um volume em oitavo, encadernado em pano. Sem dúvida, havia passado por muitas mãos. Examinei-o; seu peso inusitado me surpreendeu. Na lombada dizia Hali Writ e, abaixo, Bombay.

- Será do século dezenove – observei.

- Não sei. Não soube nunca – foi a resposta.

Abri-o ao acaso. Os caracteres me eram estranhos. As páginas, que me pareceram gastas e de pobre tipografia, estavam impressas em duas colunas, como uma bíblia. O texto era apertado e estava ordenado em versículos. No ângulo superior das páginas, havia cifras arábicas. Chamou-me a atenção que a página par levasse o número (digamos) 40.514 e a ímpar, a seguinte, 999. Virei-a; o dorso estava numerado com outra cifra. Trazia uma pequena ilustração, como é de uso nos dicionários: uma âncora desenhada à pena, como pela desajeitada mão de um menino.

Foi então que o desconhecido disse:

- Olhe-a bem. Já não a verá nunca mais.

Havia uma ameaça na afirmação, mas não na voz.

Fixei-me no lugar e fechei o volume. Imediatamente o abri. Em vão busquei a figura da âncora, folha por folha.Para ocultar meu desconcerto, disse:

- Trata-se de uma versão da Escritura em alguma língua indostânica, não é verdade?

- Não – replicou.

Logo baixou a voz como que para me confiar um segredo:

- Adquiri-o em uma povoação da planície, em troca de algumas rupias e da Bíblia. Seu possuidor não sabia ler. Suspeito que no Livro dos Livros viu um amuleto. Era da casta mais baixa; as pessoas não podiam pisar sua sombra sem contaminação. Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim.

Pediu-me que procurasse a primeira folha.

Apoiei a mão esquerda sobre a portada e abri com o dedo polegar quase pegado ao indicador. Tudo foi inútil: sempre se interpunham várias folhas entre a portada e a mão. Era como se brotassem do livro.

- Agora procure o final.

Também fracassei; apenas consegui balbuciar com uma voz que não era minha:

- Isto não pode ser.

Sempre em voz baixa o vendedor de bíblias me disse:

- Não pode ser, mas é. O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última. Não sei por que estão numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer número.

Depois, como se pensasse em voz alta:

- Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.

Suas considerações me irritaram. Perguntei:

- O senhor é religioso, sem dúvida?

- Sim, sou presbiteriano. Minha consciência está limpa. Estou seguro de não ter ludibriado o nativo quando lhe dei a Palavra do Senhor em troca de seu livro diabólico.

Assegurei-lhe que nada tinha a se recriminar e perguntei-lhe se estava de passagem por estas terras. Respondeu que dentro de alguns dias pensava em regressar à sua pátria. Foi então que soube que era escocês, das ilhas Orcadas. Disse-lhe que a Escócia eu estimava pessoalmente por amor de Stevenson e de Hume.

- E de Robbie Burns – corrigiu.

Enquanto falávamos eu continuava explorando o livro infinito. Com falsa indiferença perguntei:

- O senhor se propõe a oferecer este curioso espécime ao Museu Britânico?

- Não. Ofereço-o ao senhor – replicou e fixou uma soma elevada.

Respondi, com toda a verdade, que essa soma era inacessível para mim e fiquei pensando. Ao fim de poucos minutos, havia urdido meu plano.

- Proponho-lhe uma troca – disse. O senhor obteve este volume por algumas rupias e pela Escritura Sagrada; eu lhe ofereço o montante de minha aposentadoria que acabo de cobrar, e a Bíblia de Wiclif em letras góticas. Herdei-a de meus pais.

- A black letter Wiclif! – murmurou.

Fui ao meu dormitório e trouxe-lhe o dinheiro e o livro. Virou as páginas e estudou a capa com fervor de bibliófilo.

- Trato feito – disse.

Assombrou-me que não regateasse. Só depois compreenderia que havia entrado em minha casa com a decisão de vender o livro. Não contou as notas e guardou-as.

Falamos da Índia, das Orcadas e dos Jarls noruegueses que as governaram. Era noite quando o homem se foi. Não voltei a vê-lo nem sei o seu nome.

Pensei em guardar o Livro de Areia no vão que havia deixado o Wiclif, mas optei finalmente por escondê-lo atrás de uns volumes desemparelhados de As mil e uma Noites.

Deitei-me e não dormi. Às três ou quatro da manhã, acendi a luz. Procurei o livro impossível e virei suas folhas. Em uma delas vi gravada uma máscara. O ângulo levava uma cifra, já não sei qual, elevada à nona potência.

Não mostrei a ninguém meu tesouro. À ventura de possuí-lo se agregou o temor de que o roubassem e, depois, o receio de que não fosse verdadeiramente infinito. Estas duas preocupações agravaram minha já velha misantropia. Restavam-me alguns amigos; deixei de vê-los. Prisioneiro do Livro, quase não saía à rua. Examinei com uma lupa a lombada gasta e as capas e rechacei a possibilidade de algum artifício. Comprovei que as pequenas ilustrações distavam duas mil páginas uma da outra. Fui anotando-as em uma caderneta alfabética, que não demorei a encher. Nunca se repetiram. De noite, nos escassos intervalos que a insônia me concedia, sonhava com o livro.

O verão declinava e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me serviu considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade.

Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente infinita e sufocasse o planeta de fumaça.

Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. Antes de me aposentar trabalhava na Biblioteca Nacional, que guarda novecentos mil livros; sei que à mão direita do vestíbulo, uma escada curva se some no sótão, onde estão os periódicos e os mapas. Aproveitei um descuido dos empregados para perder o Livro de Areia em uma das úmidas prateleiras. Tratei de não me fixar em que altura, nem a que distância da porta.

Sinto um pouco de alívio, mas não quero nem passar pela Rua México.

Jorge Luis Borges

2 comentários:

Débora Andrade disse...

É bobagem dizer que procuraria entre novecentos mil livros pelo livro de areia? O cenário de tudo o que li ainda está diante dos meus olhos, talvez eu também sonhe com o livro, de tanto que o aprecio, mesmo sem conseguir imaginá-lo completamente.

Andrei Correia disse...

Estive com Borges, com o Fazedor, até há poucos dias. É desconcertantemente bom.

Mas os versos são difíceis para mim. Leio-os como se lesse em voz alta, para mim mesmo.

E fico refém da busca, de resto meio boba, pela métrica.