11/08/2009

Lampião à luz de Pierre Bordieu

A questão que me norteou para escrever o presente ensaio (originalmente intitulado Pierre Bourdieu e Lampião: o poder simbólico do cangaço) foi a seguinte: será que poderíamos olhar o cangaceiro Lampião à luz do pensamento do sociólogo Pierre Bourdieu?

Neste post pretendo aproximar os dois. Não será um ensaio interligando a biografia deles, claro. Mas, tentando analisar como poderíamos direcionar o olhar para a figura de Lampião sob uma perspectiva desenvolvida por Bourdieu no esteio de alguns conceitos seus.

(Caso queiram, leiam mais sobre Bourdieu clicando aqui e aqui).

Em primeiro lugar, é preciso dizer que para Bourdieu o poder simbólico é um elemento fundamental dentro da nossa sociedade contemporânea, no que tange aos elementos de dominação e conservação do status quo vigente. Esse poder simbólico aparece como um mecanismo de imposição de significações aos símbolos, bem como um elemento de legitimação da ordem estabelecida. Em segundo lugar, precisamos reconhecer que nossos hábitos e ferramentas de atuação dentro da sociedade estão embebidos de elementos simbólicos.

O habitus, conceito fundamental para compreensão da obra de Bourdieu, seria uma força ‘congelante’ que nos mantém habituados com nossos estilos de vida, nossas verdades, contribuindo fortemente como elemento conservador da ordem social. Em terceiro lugar, é necessário entender de que forma os grandes veículos de comunicação contribuem para a manutenção e difusão do poder simbólico.

Esses conceitos muito bem definidos ao longo das obras de Bourdieu são extremamente importantes para pensarmos a sociedade em que vivemos: tanto para refletir sobre os mecanismos de dominação política ao qual estamos sujeitos, quanto para raciocinar de que maneiras estamos habituados com a proliferação de verdades no campo sócio-cultural da sociedades que vivemos. Por fim, de que forma esses elementos conceituais poderíam nos ajudar a revirar do avesso o status quo que legitimamos muitas vezes sem perceber – por estarmos crentes de que nossos símbolos possuem estatuto de verdades incontestáveis.

Lampião: Rei do Cangaço e herói marketeiro?

O caso de Lampião é particularmente interessante para nós pensarmos de que forma atuam em nossa sociedade as forças que legitimam as significações de nossos símbolos. O fato de ter completado 70 anos de sua morte é significativo, pois nossos veículos de comunicação estão transbordando de matérias sobre o cangaceiro durante esta semana.

Pensemos os grandes veículos de comunicação como verdadeiras fábricas de rostos e significados. Não foram poucas as transformações produzidas nas feições do rosto de Lampião (ou seria, dos Lampiões?) e dos cangaceiros, nas décadas subseqüentes à sua morte.

Basta fecharmos os olhos para saltar à nossa mente algumas imagens bem ou mal definidas de um Lampião que é Rei do Cangaço, de um Lampião Justiceiro, de um Lampião ‘Caba da Peste’ que usa chapéu de couro, porta espingarda em uma das mãos, peixeira na outra e é valente. De um Lampião revolucionário, engajado em causas sociais, um Lampião quase-comunista que usurpava os ricos para abonar os pobres, ou, por último, de um lampião que não passa de um objeto para iluminar ambientes.

As re-presentações desses símbolos são de tantas formas que não sabemos em qual delas acreditar! Essa cadeia produtiva forma uma espécie de camada sedimentar subterrânea que abriga os conteúdos imagéticos de várias épocas. “Peguemos, para estarmos com o bom senso, um pouco de cada?…” Dessa forma ainda buscamos estabelecer arquétipos entre os sedimentos de informação simbólica.

Muitas mídias juntas compuseram em harmonia ou desarranjo (ainda que não soubessem disso) as imagens de Lampião e do Cangaço. As pinturas de Portinari, os cordéis, o cinema de Glauber Rocha, a fotografia, a televisão, os jornais, enfim, toda uma rede de produção começa a operar como uma engrenagem subterrânea, uma máquina invisível de fabricação e difusão desses símbolos. Aqueles que têm a posse dos meios de produção e re-produção de informações simbólicas (ou seja, os que mantêm condições capitais mínimas para produção de arte e de informação) são os operários dessa fábrica de imagens do Cangaço.

Vejamos dois exemplos bastante conhecidos dos rostos de Lampião e, por extensão, dos cangaceiros:

Tenho a impressão que paira no ar certa idéia dessa produção como uma conseqüência da realidade – em uma palavra, um reflexo da própria verdade. Talvez estejamos enganados. Perpassa, nas estruturas do saber (jornais, revistas e mesmo artigos acadêmicos), certo conceito de que Lampião teria sido uma espécie de astuto marketeiro, por supostamente saber se utilizar dos veículos de comunicação (jornais e fotografias) para propalar suas idéias, suas intenções e sua imagem.

No entanto, se revirarmos o subsolo das coisas, veremos que há outras coisas lá em baixo…, ainda mais significantes que as coisas de cima. Esses significantes são o que dão significados às coisas – às imagens. Sem uma história, uma coisa não significa nada. Isso que se costuma chamar “conseqüência”, eu chamarei de “causa”, operando uma inversão da ordem das coisas. Penso que fazendo isso, poderemos compreender melhor como se processou a fabricação das imagens de Lampião e do Cangaço ao longo do século XX.

Vejamos: costuma-se difundir essa idéia de quê Lampião sabia (à sua maneira), manipular com habilidade os veículos de comunicação em pró de seus interesses. Há quem costume acreditar nesse mito como uma verdade inconteste. Mas, será que é tão incontestável assim? Ou será que são os veículos de comunicação que o utilizam para seus interesses particulares?

Precisamos compreender também que a exibição das cabeças dos cangaceiros mortos em Angicos (foto abaixo), da forma “espetacular” como aconteceu, foi mais uma forma de maquiar a realidade. A idéia de quê o cangaço acabou ali é uma inverdade. O cangaceiro Corisco, por exemplo, continuou na ativa por certo tempo. Além disso, é como se difundisse uma imagem de que o sertão estava redimido pelas forças do governo getulista do Estado Novo.

Não apenas acho contestável como também um pensamento equivocado, acreditar nessa idéia de um Nordeste redimido e livre da figura assombrava que foi Lampião, um cangaceiro que supostamente manobrava a Imprensa de acordo com seus interesses. O único objetivo dessa idéia é manter a ordem estabelecida no campo simbólico do nosso pensamento. É preciso revirar a ordem das coisas. Revolver a terra. Subeverter as imagens que temos dentro de nós. Mantê-las é um gesto passivo e conservador que, acredito, devemos evitar.

As mutações do rosto de Lampião

Desde a década de 1930 que a imagem de Lampião é estampada em jornais e revistas. Suas aparições, certamente se deram de muitas formas diferentes, desde o Rei do Cangaço, o homem que atemoriza as regiões nordestinas, cruel e sem alma, aliado das forças atrasadas dos grandes coronéis, logo, repulsivo, símbolo do subdesenvolvimento do país. Em outras significações, vemos uma espécie de pastiche de Robin Hood, quase comunista, justo e honrado, defensor dos pobres e oprimidos.

Ultimamente, parece que alguma coisa está acontecendo com Lampião, aliás, com Lampião não, mas com o que se inventa de sua imagem. É como se o cangaceiro viesse aos poucos ganhando certo charme, certo refinamento e glamour, bebendo whisky e, dessa maneira, abandonando seu estado de barbárie e ganhando status de civilidade…

Estamos assistindo durante todo este mês “comemorativo” (o ensaio foi escrito originalmente quando dos 70 anos da morte de Lampião, em 2008) a re-produção da mais nova idéia de Lampião: um sujeito “antenado” com a moda, criativo e, até mesmo, ditador de tendências. Isso tudo chega a ser tão assombroso que forma uma espécie de sedimentação no rosto e nos significados de Lampião e do cangaço.

É como se ao longo do tempo fossem sendo sobrepostos tantos estereótipos, tantas máscaras, que sua rostidade se desfigura, tornando-se uma espécie de Michael Jackson do banditismo social e do mundo pop, ou seja, uma aberração simbólica que adquiri significações tão díspares entre si, que ele (Lampião) já nem existe mais, a não ser como força simbólica, estética, ressignificável a cada instante, em uma palavra, um subjeto de apropriação aleatória pelos grandes veículos de comunicação.

Conclusão inconclusa

Os implicativos desse gesto de artificialização de sua imagem é algo que devemos nos ater. É preciso compreender que todas essas superposições imagéticas criam um estado de coisas tão repulsivo, que essa aparente “transformação” de sua imagem não passa de um ledo engano. Uma mentira desvalada que tem por objetivo mascarar a realidade dos distúrbios sociais dos Brasil de outros tempos. Por outro lado, é como se matasse dois coelhos com uma cajadada só: elimina-se de uma vez nossa compreensão histórica do Brasil das décadas de 1920-30, jogando poeira em nossos olhos, além de folclorificar sua imagem, conservando assim o estado pseudonatural das coisas.

É contra essa naturalização das coisas que deve se dirigir nosso olhar. Temos de ter muito cuidado com a propagação e conservação dos nossos símbolos. Revira-los do avesso é um exercício bastante saudável, embora doloroso. Antes de crivar a culpa em nossos grandes veículos de comunicação, precisamos também olhar para nós mesmos, nossas crenças, desejos e demandas. Precisamos reconhecer que o combustível dessa fábrica de imagens também é o nosso desejo, inconsciente ou não, de imprimir rostos e paisagens.

É também a partir dessa motivação que nossos artífices-criadores de imagens trabalham, sabendo ou não desse processo. E, nós, muitas vezes figuramos como meros consumidores de informações e imagens, sem nos darmos conta que também somos responsáveis por sua produção e re-produção.

2 comentários:

Luciana Cavalcanti disse...

Meu caro amigo, teu brilhantismo acaba de reconciliar-me com Bourdieu - de cujas letras eu vinha correndo como (supostamente) corre o diabo da cruz!
Agora, uma pergunta: enviate este artigo pras revistas de História? de ciência política? de comunicação? Nãaaao...?!? Se tu não enviou, eu vou bater em tu!!!

André Raboni disse...

Luciana,
Mandei não, ó... Teria que ter notas de rodapé... heheheheh