15/12/2010

Morte na zona, danação eterna e indulgência papal… no interior do Piauí nos anos 50

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Um conto – ou talvez crônica – de autoria de Sidarta
Extraído no blog A Poção de Panoramix

Há uma região no estado do Piauí, na fronteira com o Maranhão, conhecida como “caminho do céu”, pois quase todas as localidades na estrada principal possuem nomes de santos católicos.

A última localidade nessa estrada poderia ter qualquer nome, mas achei mais apropriado chamá-la de “Anus Mundi”, uma vez que parece ser isso mesmo e não me lembro, nem mais achei no Google Earth  o nome real do famoso lugar.

Nos anos 1940, saiu de Anus Mundi para ir estudar em Teresina um rapaz de futuro promissor, não tão baixinho, de cabeça tão pequena e sem pescoço como a maioria dos seus conterrâneos, e também dotado de uma boa voz (era locutor esportivo e torcia invariavelmente pelo Anus Mundi Futebol Clube – AMFC do Piauí).

Em Teresina, estudou direito e, nos anos 1950, conseguiu publicar um artigo em um jornal com uma proposta de tese sobre uma questão polêmica: atirar em alguém pelas costas, sem a vítima perceber quem estava atirando, era um crime maior ou menor do que atirar de frente?

O caso é que matava-se e morria-se muito de bala em Anus Mundi e redondezas por aqueles anos e, assim, a tese podia ter interesse prático!

Um advogado experiente do Ceará, aproveitou-se da discussão e passou a insinuar que se o criminoso conseguisse pegar a vítima olhando para um espelho, essa não poderia alegar que o tiro foi dado pelas costas (se escapasse do tiro) pois, para a vítima, ela percebeu o tiro como que vindo de frente pelo espelho.

Os advogados estavam tomando consciência das vantagens de conhecer um pouco da teoria da relatividade de Einstein, além do arsenal comum de lógica elementar.

A tese ganhou discussão e o nobre, jovem e promissor advogado conseguiu uma bolsa de estudos para fazer um estágio na Itália, onde conheceu o papa de Roma e também aproveitou a viagem, e parte do dinheiro economizado da bolsa, e comprou do Vaticano um certificado de indulgência, que supostamente lhe perdoava automaticamente alguns tipos de pecados, sem ter que  os confessar a um padreco qualquer.

Dentre os pecados incluídos no certificado (e aí eu desconfio que houve falcatrua, pois só era mostrada uma cópia heliográfica do certificado… o original o proprietário dizia que o mantinha em um cofre secreto), estava a dispensa da danação eterna se o proprietário do tal certificado emitido pelo Vaticano de Roma morresse, por exemplo, de repente… na zona.

Já no fim dos anos 1950, o bispo da diocese que englobava a localidade de Anus Mundi anunciou uma visita pastoral, um evento de importância monumental para a comunidade anusmundense.
Não há como descrever os preparativos dos moradores para a chegada do bispo, e até pessoas que já tinham deixado Anus Mundi para ir morar em Fortaleza, em São Luis e em Teresina (diziam que havia anusmundense até em São Paulo) vieram para prestigiar a visita do bispo.

Dentre os anusmundenses notáveis, veio o brilhante advogado que foi estudar em Teresina nos anos 1940 (já lidava em Teresina com uma bem conceituada banca), o proprietário da indulgencia papal.

Para não esticar muito a estória, vou rápido aos finalmente.

Na véspera da chegada do bispo, um vereador local muito querido teve o azar de morrer na zona…. e a notícia logo chegou aos ouvidos do bispo, assim que colocou os pés em Anus Mundi.

A pena para a alma do querido e azarado vereador era excomunhão seguida de danação eterna, não havia dúvidas.

Foi aí que o brilhante advogado anusmundense, o criador da idéia que gerou depois a tese da relatividade do caminho da bala diante de um espelho, resolveu oferecer alugar (vender? só por uma fortuna incomensurável) o seu papel de indulgência papal “até para morte na zona”, para que o documento fosse recopiado com o nome do recém falecido político, e apresentado ao bispo para que se conseguisse o perdão para a alma do querido vereador “Zé das Nêgas”.

Iniciada a coleta de donativos para a aquisição “da cópia da cópia” do documento papal, acertou-se com o bispo que “Zé das Negas” não iria para o inferno, mas que a igreja ficaria com todo o dinheiro coletado para alugar e fazer uma cópia do certificado de indulgência para “morte na zona”.

Foi a única vez que eu soube que um advogado esperto não conseguiu fechar um negócio com um cliente “realmente em desespero”; o advogado chefe da banca do concorrente era simplesmente um delegado oficial comissionado de Deus na terra.

14/11/2010

Saldo Negativo, por Fernando Correia Pina



Dói muito mais arrancar um cabelo de um europeu
que amputar uma perna, a frio, de um africano.
Passa mais fome um francês com três refeições por dia
que um sudanês com um rato por semana.

É muito mais doente um alemão com gripe
que um indiano com lepra.
Sofre muito mais uma americana com caspa
que uma iraquiana sem leite para os filhos.

É mais perverso cancelar o cartão de crédito de um belga
que roubar o pão da boca de um tailandês.
É muito mais grave jogar um papel ao chão na Suíça
que queimar uma floresta inteira no Brasil.

É muito mais intolerável o xador de uma muçulmana
que o drama de mil desempregados em Espanha.
É mais obscena a falta de papel higiênico num lar sueco
que a de água potável em dez aldeias do Sudão.

É mais inconcebível a escassez de gasolina na Holanda
que a de insulina nas Honduras.
É mais revoltante um português sem celular
que um moçambicano sem livros para estudar.

É mais triste uma laranjeira seca num kibutz hebreu
que a demolição de um lar na Palestina.

Traumatiza mais a falta de uma Barbie de uma menina inglesa
que a visão do assassínio dos pais de um menino ugandês

e isto não são versos; isto são débitos
numa conta sem provisão do Ocidente.


Fernando Correia Pina, poeta português. 

25/10/2010

Bolero de Ravel


Recomendo aumentar o volume do som. Pode aumentar bastante. O quanto possível, até ao limite que não lhe estoure os fones do som nem os tímpanos dos ouvidos. 
Se tens vizinhos, faça-o antes das 22h, ou meta-se uns fones dentro das orelhas. 

O resto é sentir. Escutar.

13/10/2010

Algo de Fela Kuti



Fela Kuti é uma figura excepcional que fundou, na década de 1970, uma república autônoma dentro da Nigéria. Escrevi brevemente sobre ele há tempos no blog acerto de contas. Ultimamente, tenho escutado muito suas músicas, e coloco algumas aqui. No velho post do Acerto, escrevi o seguinte:

Conheci a música e a história de Fela Kuti há uns 3 anos, através de um amigo que me mostrou um disco e contou algumas histórias. O som é muito bom, contagiante. Além disso, Fela foi uma grande figura.

Nascido no ano de 1938, em uma família de classe média da Nigéria, foi estudar medicina em Londres, em 1958, mas seu destino era mesmo a música. Estudou no Trinity College of Music.

Sua história de vida é repleta de passagens insólitas.

No início da década de 1970, quando retornou à Nigéria, Fela fundou a chamada República Kalakuta – que era um estúdio e casa para as pessoas ligadas à sua banda (Afrika 70) e, posteriormente, ele proclamou independência à comuna.

Consta que certa vez, em 1974, a polícia ‘plantou’ um cigarrinho de maconha pra prendê-lo (ele era odiado pelo governo), mas ele acabou o comendo, pra livrar-se do flagrante. A polícia o levou mesmo assim, sob custódia, para fazer um exame de fezes e provar que havia maconha em posse de Fela.

Mas ele conseguiu a ajuda de outros detentos, e pegou um punhado de cocô emprestado e o entregou à polícia. Daí ele conseguiu ser libertado. Foi então que nasceu Expensive Shit (“merda cara”).

Mas a insolitude de sua vida não se resume a este caso.

O lançamento de Zombie (que era uma metáfora para designar criticamente os soldados das forças armadas da Nigéria) provocou muito tumulto. O sucesso do álbum enfureceu o governo e resultou num ataque feroz à República. Em 1978, Fela casou-se com 27 mulheres (muitas ligadas à banda dele, como dançarinas ou vocalistas). O evento marcava o aniversário do ataque à República Kalakuta.

Fela ainda se candidatou à presidência, em 1979, mas sua candidatura foi recusada.

A biografia do camarada é interessantíssima, marcada por uma politização que buscava lutar contra preconceitos, atingir liberdades individuais e difundir a consciência dos direitos do povo negro no mundo.

Sua música também é muito interessante. Mesclando vários ritmos como o Funk, o Jazz e cânticos africanos, criou uma Black Music original para expressar suas ideias e seus sentimentos.

Confiram mais alguns vídeos:

Zombie


Water no get enemy


Expensive Shit

24/07/2010

O Mendigo Maltrapilho da Rua do Mercado


CHOVIA. A rua, deserta e fria, não estava convidativa. Sair era uma provocação ao bom senso. Em verdade, não chovia: gotejavam poucos pingos de umidade repulsiva. Trajei-me apropriadamente como se deve trajar um filósofo experimental: ao modo da ocasião. Enfastiado da ausência de perigo e do conforto de meu aquecido lar, vesti-me ao tom do clima e parti de minha caverna para ter com os outros.

Na rua poucas almas caminhavam. Menos paravam recostadas em postes ou árvores: cálidas de fungos úmidos.

O pedaço de rua, que, aqui, convém-nos saber: asfaltada, com velhos sobrados reformados, postes como pilares de fiações caóticas, canaletas de meio-fio embalsamadas por água e lodo, duas árvores na calçada mal conservada, separadas uma da outra dez metros – os dez metros que serão palco de nossa estória.

Nada nos custa gastar mais algumas linhas na descrição de nossos dez metros de rua e calçada: olhando na direção norte-sul: ao lado direito vêem-se seis sobrados. O primeiro deles, uma pequena venda, com fachada em azulejo português envelhecido; o segundo, em péssimo estado de conservação, cor de verde-nojento: em sua parte baixa habitava um lodo já vivido e caduco, porém não tão decrépito quanto o restante da fachada deste repugnoso sobrado.

Após este, outro sobrado cor-de-rosa murcha: duas janelas e uma imensa porta de madeira (a partir da qual julgava-se que ali deveria viver um gigante!...). Dali até a segunda árvore, mais três sobrados: um azul, outro rosa e o terceiro e sexto e último de nosso cenário, amarelo recém pintado.

Conforme o céu foi clareando, as pessoas foram-se atirando à rua; a umidade, reduzindo pouco a pouco. Passos e vozes movimentavam-se no ar e na calçada turva de acontecimentos.

No pé da árvore em frente à venda, sentou-se um mendigo maltrapilho fumando um filtro de cigarro.

Na venda, homens conversavam sobre o ocaso da puta da esquina, degolada por um cliente desconhecido. Tal conversa era atravessada pela rouca voz do mendigo maltrapilho – que trabalhava e pedia cigarros nos seus minutos de folga.

Me dá um cigarro!” – Falava penosamente, estas que pareciam ser as únicas palavras conhecidas pelo pedinte. Toda vez que soava esta voz um cachorro sarnento deitado tranqüilamente ao lado dele levantava as orelhas, num gesto de cumplicidade.

Do lado esquerdo da rua, estendia-se toda a parte frontal de um mercado, cuja fachada, cor de vermelho-velho-alaranjado, abrigava diversas lojinhas.

Ao passo que avançavam as horas, mais transeuntes saíam às ruas: mais demanda para o mendigo-maltrapilho... Que fumava e prestava seus serviços de Demiurgo-do-perdão, arauto da caridade piedosa.

Vá lá! uma moedinha para o mendigo-maltrapilho ser um fio de indulgência!

Aqui se faz, a tu se paga!

Passavam neste instante seis humanistas pela frente da venda. Sentindo compaixão daquele ser recostado ao pé da árvore, quatro deles se abaixaram para ter com o mendigo:

– “Estás bem, amigo?” Disse um deles, repousando sua mão direita sobre o ombro do mendigo-maltrapilho, que fumava.

– “...!”. Respondeu o mendigo, atirando-lhe um olhar oblíquo, dando o último trago em seu filtro de cigarro e o atirando por cima do braço do humanista pousado sobre seu ombro, em um gesto que afastou assaz a mão do homem.

– “Estamos aqui para lhe ajudar.” Argumentou o segundo.

– “Me dá um cigarro!” Disse-lhe, olhando raso, rápido e sincero, olho no olho, como quem cativa a permanência do outro com a discrição própria de um ser refinado.

Os outros dois humanistas ficaram em pé, alertando aos transeuntes o absurdo de haver um homem naquelas condições, em pleno século XXI.

Da venda, eu, de soslaio, pesquei alguns trechos do discurso dos dois humanistas que estavam em pé: “Vejam como este homem sofre! Isto é fruto do capitalismo!” e, “O sistema corrói a dignidade humana!” ou, ainda, “Temos que destruir o... e implantar uma sociedade...!

Perdoe-me o leitor pela falta de empenho em transcrever todo o discurso; confesso que a conversa ao lado sobre a degola da puta da esquina estava bem mais interessante.

Aos poucos, a situação em frente à venda foi ganhando proporção intrigante; a ponto de tornar-se mais interessante do que o papo sobre o destino da puta.

Mais e mais pessoas se juntavam aos humanistas em redor do mendigo-maltrapilho. O mendigo, sentado, nada falava, apenas fumava, agradecia algumas indulgências com um breve movimento de cabeça ou piscar de olhos. De quando em quando se ouvia sua voz rouca emitir um diligente “Me dá um cigarro!”.

Pessoas foram se sentando, solidárias ao estado miserável no qual se encontrava o mendigo-maltrapilho. Todos atentos e cegos ao discurso dos humanistas, solidarizavam-se com o estado de miséria surda de toda a situação.

Na esquina, um caminhão acabara de estacionar. O mendigo olhou-o largamente... de tal forma que me pareceu ver sua alma se ausentando do lugar onde se achava seu corpo e indo ter com o caminhão...

Gozando de status elevado, o mendigo-maltrapilho apenas abria a boca e as pessoas em volta lutavam para ver quem conseguiria primeiro lhe meter um cigarro entre os dentes, e outros mais se digladiavam para acendê-lo. Quase sempre, o primeiro humanista conseguia, por estar em posição privilegiada... O que foi, aos poucos, despertando inveja nos demais presentes.

Em poucos minutos a calçada estava lotada de gente piedosa, vinda de todas as partes (até sotaque americano pude identificar!). Todos embriagados de compaixão pelo mendigo-maltrapilho e pelas mazelas do mundo, multiplicavam a dor – supostamente – existenciada pelo silencioso e sofrível mendigo, que pedia cigarros. Até eu tentei (sem sucesso) conceder um cigarro a ele.

Algumas velhinhas choravam, crianças assistiam com olhos esbugalhados de assombro e estranhamento àquele espetáculo inédito na rua. Os homens gritavam enlouquecidos contra o mundo; ouviam-se preces em voz baixa, clamando a Deus que acabasse com aquele sofrimento coletivo...

Uma leve chuva começou a cair como lágrimas de um deus sensivelmente humano e piedoso. De leve, a chuva engrossou em poucos segundos. O mendigo-maltrapilho ergueu-se. As pessoas ao redor se calaram, entreolhando-se interrogativamente como quem espera uma ação – esperavam talvez algum discurso que anunciasse uma fatalidade metafísica e transcendental ?

Um gesto de revolta imanente e revolucionário? Uma convocação para a luta? Mas, para a luta de quem?

Com olhar profético e solene o mendigo disse a todos que ali se achavam:

Alguém me dá um cigarro!

E se foi afastando a passos lentos, ultrapassando sobrado a sobrado, até recostar-se sozinho, no pé da outra árvore, dez metros ao sul, aonde contou suas moedas e acendeu seu cigarro. Ergueu a vista e observou a multidão piedosa e intrigada ainda em lágrimas mudas, e viu o cão sarnento vindo em sua direção.

Na esquina, o caminhão ligara seu motor e partiu elegante e soberbo em um movimento ligeiro e preciso diluindo aos poucos todo o cenário e ganhando velocidade rapidamente derrapou na umidade divina da rua subindo a calçada e trucidando 90% daqueles que ali se achavam começando pelos humanistas, depois as velhas, os homens e as mulheres.

As crianças, semelhantes a rodas girando sobre si mesmas, em gestos habilidosos e astutos, salvaram-se para um novo começar.

O mendigo-já-não-tão-maltrapilho (quando comparado àqueles corpos mutilados) parecia divertir-se como nenhum homem jamais se divertira antes! Desde que há homem na Terra - e há tão pouco tempo que existem homens na Terra!

O mendigo passara por entre os homens como por entre os animais...
Assistiu a tudo dez metros ao longe. Dei as costas para o filósofo tentador que eu experimentara e retornei para o minha segura e aquecida caverna cor-de-rosa murcha.

04/07/2010

Frase que despercebida passa


Frase que despercebida passa...
e fica, enquanto se caminha a passos leves De rua molhada que seca na brisa Do arrepio do corpo de chão de piche Da atenção a ti que passas, que voltas e que a passar retornará no semblante Esquecido da face que anda e vai No rumo do andar em ritmo de gotas trôpegas No suor que a chuva dá no chão da rua quando cai.

Frase que despercebida passa...
vem que eu vou indo até o esquecimento Que me lembrará de ti a ecoar em mim As falas de seus substratos mais eloquentes e gélidos De sol de frio que arde na tempestade que beija os lábios Transeuntes do corpo que segue escorrendo partículas de ar De tempo veloz num olho e no outro lento.

Frase que despercebida passa...
perco-lhe a hora no intervalo da minha atenção Quando ocupada com o vão das coisas ordinárias ela fica e me trava Os sentidos que arremesso nas fossas que beiram às bordas dos caminhos que sigo Nem cego nem surdo mas quase mudo de lado na rua Que meus pés pisam a busca de andarem sempre.


Emulação do Elixir


É bela a chuva que cai, agora, por sobre a natureza morta.

A rua o barro é o mais vivo no calcanhar que paira à porta.
Mas cadê as flores que não brotam nas rochas da estima?!
E o olhar olha a vida... às visões de mundo... Que lástima!
Qualquer merda de sonho, se não é matéria, é devaneio!

- Bate à porta, monte de estrume! Faz da alma, do peito, frito cortume! O teu lume inteiro te carregará lá pro meio da bosta em que há de atolar toda esperança que se a ter tu te acostumes!


- Vem jantar... Como queiras, à mesa ou ao chão.
- Dispenso todas as falas, e elas me dispensam igualmente.

Ah!, perda de tempo, que tua glória torne a tudo pó a emular o elixir da vida!

A Roberto Piva, um Elegíaco na forma

"Fernando, vamos ler Kierkegaard e Nietzsche no Jardim Trianon pela manhã, enquanto as crianças brincam na gangorra ao lado."

O verso acima, do poema Ode a Fernando Pessoa, de Roberto Piva - tenho essa impressão -, deve ser um dos únicos (senão o único) que trago gravado na cabeça - decorado, como se diz. É belo por muitas paralaxes, prismas, mas é belo principalmente pela simplicidade da imagem. Pela beleza da evocação.

Há um certo tempo, e por uma certa duração que já não dura mais, também memorizara os versos inteiros de Momento num Café, de Bandeira.

Li no site do Estadão (mas quem primeiro noticiou foi a Folha) que falecera, ontem, aos 72 anos, o poeta Roberto Piva. Nada de dolorificar-me, ausente de falseadas "dores" estou, e seria pantomima dizer coisas deste gênero das dolorências. A notícia não me causou choque. Piva já vinha adoentado há algum tempo, e estava internado no Incor desde maio.

Conheci alguns de seus versos depois de trocar ideias com Renata D'Elia, há uns anos. D'Elia escreveu sobre Piva no seu blog, Magic on Sundays, depois de trabalhar o tema da poesia marginal na São Paulo da década de 1960. Recomendo a leitura do post da D'Elia (aqui), para quem desejar ir a mais nas coisas do Piva.

Falei com a ela agora há pouco, pela internet (que pessoalmente não a conheço - ela, que deve a si mesma uma visita ao Recife...) e ela me disse que acabara de chegar do velório, onde fora cremado o poeta, seu amigo - e, em suas palavras, "seu último herói magnético".

Contrariando o habitual, ela pareceu-me lacônica. Imagino-a ocupada para falar mais, porém talvez esteja um tanto abatida. Não sei. Não dei o trabalho a mim e a canseira à ela, de pergungar sobre isso, que é desimportante. D'Elia, que é jornalista e escritora, também deu uma entrevista à Folha de S.Paulo - a matéria está neste
link.

***

Debochado. Pervertido. Erudito. Eu diria apenas (não sei se existia essa palavra antes de eu grafá-la, depois do parênteses à frente) um Elegíaco.

É. Um "Elegíaco", soa-me bem, isso. Mas sem o peso das dolorências. Elegíaco nas formas.

"Fernando, vamos ler Kierkegaard e Nietzsche no Jardim Trianon pela manhã, enquanto as crianças brincam na gangorra ao lado."

Bela!, Piva, tua Ode.

E não só.

"A Piedade"



"Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos"

******

"Ode a Fernando Pessoa"

Roberto Piva (1962)


O rádio toca Stravinsky para homens surdos e eu recomponho na minha imaginação
a tua vida triste passada em Lisboa.
Ó Mestre da plenitude da Vida cavalgada em Emoções,
Eu e meus amigos te saudamos!
Onde estarás sentindo agora?
Eu te chamo do meio da multidão com minha voz arrebatada,
A ti, que és também Caeiro, Reis, Tu-mesmo, mas é como Campos que vou
saudar-te, e sei que não ficarás sentido por isso.
Quero oferecer-te o palpitar dos meus dias e noites,
A ti, que escutaste tudo quanto se passou no universo,
Grande Aventureiro do Desconhecido, o canto que me ensinaste foi de libertação.
Quando leio teus poemas, alastra-se pela minh'alma dentro um comichão de
saudade da Grande Vida,
Da Grande Vida batida de sol dos trópicos,
Da Grande Vida de aventuras marítimas salpicada de crimes,
Da grande vida dos piratas, Césares do Mar Antigo.
Teus poemas são gritos alegras de Posse,
Vibração nascida com o Mundo, diálogos contínuos com a Morte,
Amor feito a força com toda Terra.

Sempre levo teus poemas na alma e todos os meus amigos fazem o mesmo.
Sei que não sofres fisicamente pelos que estão doentes de Saudade, mas de
Madrugada; quando exaustos nos sentamos nas praças, Tu estás conosco, eu
sei disso, e te respiramos na brisa.
Quero que venhas compartilhar conosco as orgias da meia-noite, queremos ser
para ti mais do que para o resto do mundo.
Fernando Pessoa, Grande Mestre, em que direção aponta tua loucura esta noite?
Que paisagens são estas?
Quem são estes descabelados com gestos de bailarinos?

Vamos, o subúrbio da cidade espera nossa aventura,
As meninas já abandonaram o sono das famílias,
Adolescentes iletrados nos esperam nos parques.
Vamos com o vento nas folhagens, pelos planetas, cavalgando vaga-lumes cegos até o Infinito.
Nós, tenebrosos vagabundos de São Paulo, te ofertamos em turíbulo para uma
bacanal em espuma e fúria.
Quero violar todas as superfícies e todos os homens da superfície, Vamos viver para além da burguesia triste que domina meu país alegremente
Antropófago.
Todos os desconhecidos se aproximam de nós.
Ah, vamos girar juntos pela cidade, não importa o que faças ou quem sejas, eu te
abraço, vamos!
Alimentar o resto da vida com uma hora de loucura, mandar à merda todos os deveres, chutar os padres quando passarmos por eles nas ruas, amar os
pederastas pelo simples prazer de traí-los depois,
Amar livremente mulheres, adolescentes, desobedecer integralmente uma ordem
por cumprir, numa orgia insaciável e insaciada de todos os propósitos-
Sombra.
Em mim e em Ti todos os ritmos da alma humana, todos os risos, todos os olhares,
todos os passos, os crimes, as fugas, Todos os êxtases sentidos de uma vez,
Todas as vidas vividas num minuto Completo e Eterno,
Eu e Tu, Toda a Vida!
Fernando, vamos ler Kierkegaard e Nietzsche no Jardim Trianon pela manhã,
enquanto as crianças brincam na gangorra ao lado.
Vamos percorrer as vielas do centro aos domingos quando toda a gente decente
dorme, e só adolescentes bêbados e putas encontram-se na noite.
Tu, todas as crianças vivazes e sonolentas,
Carícia obscena que o rapazito de olheiras fez ao companheiro de classe e o
professor não vê;
Tu, o Ampliado, latitude-longitude, Portugal África Brasil Angola Lisboa São
Paulo e o resto do mundo,
Abraçado com Sá-Carneiro pela Rua do Ouro acima, de mãos dadas com Mário de Andrade no Largo do Arouche.
Tu, o rumor dos planaltos, tumulto do tráfego na hora do ¿rush¿, repique dos
sinos de São Bento, hora tristonha do entardecer visto do Viaduto do Chá,
Digo em sussurro teus poemas ao ouvido do Brasil, adolescente moreno empinando papagaios na América.
Vamos ver a luz da Aurora chispando nas janelas dos edifícios, escorrendo pelas
águas do Amazonas, batendo em chapa na caatinga nordestina, debruçando
no Corcovado,
Ouçamos a bossa-nova deitados na palma da mão do Cristo e a batucada vinda
diretamente do coração do morro.
Tu, a selvagem inocência nos beijos dos que se amam,
Tu o desengajado, o repentino, o livre.
Agora, vem comigo ao Bar, e beberemos de tudo nunca passando pela caixa,
Vamos ao Brás beber vinho e comer pizza no Lucas, para depois vomitarmos
tudo de cima da ponte,
Vem comigo, eu te mostrarei tudo: o Largo do Arouche à tarde, o Jardim da Luz
pela manhã, veremos os bondes gingando nos trilhos da Avenida, assaltaremos o Fasano, iremos ver ¿as luzes do Cambuci pelas noites de crime¿,
onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio,
Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo do Mário de Andrade
(ai de nós se ele desperta!),
Mas vamos respirar a Noite do alto da Serra do Mar: quero ver as estrelas refletidas
em teus olhos.
Sobre as crianças que dormem, tuas palavras dormem; eu deles me aproximo e
dou-lhes um beijo familiar na face direita.
Teu canto para mim foi música de redenção,
Para tudo e todos a recíproca atração de Alma e Corpo.
Doce intermediário entre nós e a minha maneira predileta de pecar.
Descartes tomando banho-maria, penso, logo minto, na cidade futura, industrial
e inútil.
Mundo, fruto amadurecido em meus braços arqueados de te embalar,
Resumirei para Ti a minha história:
Venho aos trambolhões pelos séculos,
Encarno todos os fora da lei e todos os desajustados,
Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum louco sexual que eu
não acompanhe para ser julgado e condenado;
Desconheço exame de consciência, nunca tive remorsos, sou como um lobo
dissonante nas lonjuras de Deus.
Os que me amam dançam nas sepulturas.
Da vidraça aberta olho as estrelas disseminadas no céu; onde estás, Mestre Fernando?
Foste levar a desobediência aos aplicados meninos do Jardim América?
Dás um lírio para quem fugir de casa?
Grande indisciplinador, é verdade?

Vamos ao norte amar as coisas divinamente rudes.
Vamos lá, Fernando, dançar maxixe na Bahia e beber cerveja até cair com um
baque surdo no centro da Cidade Baixa.
Sabes que há mais vida num beco da Bahia ou num morro carioca do que em
toda São Paulo?
São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do Brasil?
Até teus comunistas são mais puritanos do que padres.
Pardos burocratas de São Paulo, vamos fugir para as praias?
Ó cidade das sempiternas mesmices, quando te racharás ao meio?
Quero cuspir no olho do teu Governador e queimar os troncos medrosos da floresta
humana.
Ó Faculdade de Direito, antro de cavalgaduras eloqüentes da masturbação transferida!
Ó mocidade sufocada nas Igrejas, vamos ao ar puro das manhãs de setembro!
Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?
Fornalha do meu Tédio transbordando até o Espasmo.
Horda de bugres galopando a minha raiva!
Sei que não há horizontes para a minha inquietação sem nexo,
Não me limitem, mercadores!
Quero estar livre no meio do Dilúvio!
Quero beber todos os delírios e todas as loucuras, mais profundamente que
qualquer Deus!
Põe-te daqui para fora, policiamento familiar da alma dos fortes: eu quero ser
como um raio para vós!
Violência sincopada de todos os "boxeurs"!
Brasileira do Chiado em dias de porre de absinto.
Arcabouço de todas as náuseas da vida levada em carícias de Infinito.
Tudo dói na tua alma, Nando, tudo te penetra, e eu sinto contigo o íntimo tédio
de tudo.
Realizarei todos os teus poemas, imaginando como eu seria feliz se pudesse estar
contigo e ser tua Sombra.

30/06/2010

Erik Satie, música para lugares

Dia 1º de julho de 2010: 85 anos da morte do compositor e pianista francês Erik Satie. Expoente durante o período das vanguardas europeias, conviveu e influenciou figuras como Debussy e Ravel. Satie conceituou a composição de música para lugares, em vez do trivial "música para pessoas".

A primeira série de vídeos deste post compõe a
Gymnopedie, composição publicada em três partes, a partir de 1888. As melodias são belíssimas - bem ao estilo minimalista de Satie, de ritornelos infindos daquelas folhas de papel que parecem cair num precipício ainda mais sem-fim...







A série abaixo compõe as Gnossienne.













PS: Quer baixar algumas músicas de Satie?
Oráit,
here...

18/06/2010

Dedicatória a Saramago - ao trago d'aguardente



Hoje está sendo uma espécie de "Dia Internacional de Saramago". No Twitter, até o CALA A BOCA GALVAO foi superado pelo sábio... Sua partida é notícia em tudo quanto é lugar dessa birosca chamada internet.

O vídeo acima é uma pequena homenagem nonsense ao autor do Conto da Ilha Desconhecida e A Jangada de Pedra - que não era crioulo, e passou longe de ser doido!

Nonsense pelo fato de que não tem ligação linear com José, está apenas harmoniomelodizando as lapadinhas de cana que tomo e releituras que faço de passagens de seus escritos neste meu começo de noite. Por isso a sem-sentido dedicatória do sambinha ao trago d'aguardente.

Ao sábio, "...com a atenção devida, ..."

26/05/2010

Gentle Giant: rock progressivo dos bons

Não creio que Gentle Giant seja uma uma banda muito conhecida por aí.

Segundo o wikipédia:

Gentle Giant foi uma banda de rock progressivo britânico formada em 1970 pelos três irmãos Shulman, após o término da banda pop Simon Dupree and the Big Sound em 1969. Gravaram doze álbuns entre 1970 e 1980.

Inspirados por antigos filósofos, eventos pessoais e os trabalhos de François Rabelais, a proposta da banda era: "expandir as fronteiras da música popular contemporânea, com o risco de se tornar muito impopular."
Confiram o som da rapaziada. Progressivão da melhor qualidade.

"Proclamation"



You may not have all you want or you need
all that you have has been due to my hand,
it can change, it can stay the same,
who can say, who can make their claim.

The situation we are in at this time
neither a good one, nor is it so unblest
it can change, it can stay the same,
I can say, I can make my claim.
Hail ........ Hail ........ Hail.

Unity's strength and all must be as one,
confidence in you hope will reflect in me
I think everyone not as my nation for
you are my people and there must be no change.
It can change, it can stay the same
I will say, I will make my claim.
Hail ........ Hail ........ Hail.
Hail to Power and to Glory's way.
Hail to Power and to Glory's way.
Hail to Power and to Glory's way.
Hail to Power and to Glory's way.
Day by day.
"I lost my head"




05/05/2010

Fotografias de Saul Leiter,

um norte-americano que fez imagens (fotograffias e pinturas) memóraveis nas décadas de 1940 e 1950.












24/04/2010

"The ringing of the division bell had begun"


High Hopes

Beyond the horizon of the place we lived when we were young
In a world of magnets and miracles
Our thoughts strayed constantly and without boundary
The ringing of the division bell had begun

Along the Long Road and on down the Causeway
Do they still meet there by the Cut?

There was a ragged band that followed in our footsteps
Running before times took our dreams away
Leaving the myriad small creatures trying to tie us to the ground
To a life consumed by slow decay

The grass was greener
The light was brighter
When friends surrounded
The nights of wonder

Looking beyond the embers of bridges glowing behind us
To a glimpse of how green it was on the other side
Steps taken forwards but sleepwalking back again
Dragged by the force of some inner tide
At a higher altitude with flag unfurled
We reached the dizzy heights of that dreamed of world

Encumbered forever by desire and ambition
There's a hunger still unsatisfied
Our weary eyes still stray to the horizon
Though down this road we've been so many times

The grass was greener
The light was brighter
The taste was sweeter
The nights of wonder
With friends surrounded
The dawn mist glowing
The water flowing
The endless river

Forever and ever

20/03/2010

"E tome gravata!..."



"Você que só ganha pra juntar
O que é que há, diz pra mim, o que é que há?
Você vai ver um dia
Em que fria você vai entrar

Por cima uma laje
Embaixo a escuridão
É fogo, irmão! É fogo, irmão!

Pois é, amigo, como se dizia antigamente, o buraco é mais embaixo... E você com todo o seu baú, vai ficar por lá na mais total solidão, pensando à beça que não levou nada do que juntou: só seu terno de cerimônia. Que fossa, hein, meu chapa, que fossa...

Você que não pára pra pensar
Que o tempo é curto e não pára de passar
Você vai ver um dia, que remorso!
Como é bom parar
Ver um sol se pôr
Ou ver um sol raiar
E desligar, e desligar

Mas você, que esperança... Bolsa, títulos, capital de giro, public relations (e tome gravata!), protocolos, comendas, caviar, champanhe (e tome gravata!), o amor sem paixão, o corpo sem alma, o pensamento sem espírito (e tome gravata!) e lá um belo dia, o enfarte; ou, pior ainda, o psiquiatra...

Você que só faz usufruir
E tem mulher pra usar ou pra exibir
Você vai ver um dia
Em que toca você foi bulir!

A mulher foi feita
Pro amor e pro perdão
Cai nessa não, cai nessa não

Você, por exemplo, está aí com a boneca do seu lado, linda e chiquérrima, crente que é o amo e senhor do material. E é aí que o distinto está muitíssimo enganado. O mais das vezes, ela anda longe, perdida num mundo lírico e confuso, cheio de canções, aventura e magia. E você nem sequer toca a sua alma. É, as mulheres são muito estranhas, muito estranhas...

Você que não gosta de gostar
Pra não sofrer, não sorrir e não chorar
Você vai ver um dia
Em que fria você vai entrar!

Por cima uma laje
Embaixo a escuridão
É fogo, irmão! É fogo, irmão!"


Vinícius de Moraes
Testamento

13/03/2010

Bob Dylan e a música de conteúdo

Uma bela melodia e uma harmonia bem arranjada faz por si uma boa música. Com "The great Gig in the Sky", Pink Floyd crivou, como nenhuma outra banda, que uma bela música pode dispensar letras. Claro que não foi o Floyd quem inventou isso, mas a citação serve como exemplo - e a uso neste sentido.

Evidentemente que uma bela música também pode vir acompanhada de alguma letra, ou mesmo de um derramamento de versos poéticos pouco ou muito compreensíveis, desde que poéticos. Não estou falando de coesão, mas de beleza, e ninguém aqui é tolo o suficiente para acreditar que qualquer beleza precise, necessariamente, ser coesa.

Quando uma bela melodia e uma bem arranjada harmonia combinam-se com uma letra espetacular, o resultado certamente será bom. Como na música abaixo, de Bob Dylan, "Hurricane".



A canção acima combina tudo isso que falei, e saúda o ouvinte com uma grande história - o tal conteúdo do título deste post.

"Hurricane" (furação) era o codinome do boxeador norte-americano, Rubin Carter, nascido no dia 6 de maio de 1937, e preso em 1966, acusado de um triplo homicídio num bar. Ficou encarcerado durante longos 19 anos, e solto posteriormente, no ano de 1985, inocentado.

A prisão destruiu sua brilhante carreira do "Furacão", já que era favorito pra ganhar o cinturão da categoria Peso Médio em 1966, quando marcava seus 29 anos de idade. O contexto, todos sabem, aqueles anos de luta por direito civis, em que se destacaram figuras como Malcom X e Martin Luther King, mesclados às reminiscências podres de branquelos doentes da Ku Klux Klan e seus simpatizantes microfascistas. O "Furacão" viria a receber a congratulação no ano de 1993, quase 30 anos depois de brilhar nos ringues.

A história de "Hurricane" é uma daquelas sagas judiciais de negros norte-americanos, dignas de filme. E ganhou este filme, sendo representado por Denzel Washington no longa The Hurricane.

A música de Bob Dylan é belíssima. Transplanta ao ouvinte uma vibração muito intensa, com momentos que causam arrepios. Não sei se o brilho é da bela melodia, da harmonia bem colocada, ou do rico conteúdo cantado numa letra forte, que traduz a história aguerrida de Rubin "Hurricane" Carter.

Possivelmente o brilho se deve à mágica combinação de todos esses elementos.

Um brinde ao Furacão e a Bob Dylan!

Hurricane
Bob Dylan e Jacques Levy

Tiros de revólver ressoam na noite dentro do bar
entra Patty Valentine vinda do salão superior
ela vê o garçon numa poça de sangue
solta um grito “Meu Deus, mataram todos eles!”
aí vem a história do Furacão
o homem que as autoridades acabaram culpando
por algo que ele nunca fez
colocando numa cela de prisão, mas houve um tempo
em que podia ter sido o campeão mundial

Três corpos deitados ali é o que Patty vê
e outro homem chamado Bello rodeando misteriosamente
“Eu não fiz isso” ele diz e joga os braços pra cima
“Estava só roubando a registradora, espero que você entenda
eu os vi partindo” ele diz e pára
“É melhor um de nós ligar pros tiras”
e assim Patty chama os tiras
e eles chegam na cena com suas luzes vermelhas piscando
na noite quente de New Jersey

Enquanto isso, bem longe, em outra parte da cidade
Rubin Carter e uns dois amigos estão dando algumas voltas de carro
o pretendente número um à coroa dos pesos-médios
não tinha idéia do tipo de merda que estava para baixar
quando um tira o fez parar no acostamento
igualzinho à vez anterior e à outra vez antes dessa
em Paterson é assim mesmo que as coisas rolam
se você é negro, melhor nem aparecer na rua
a não ser que queira atrair uma batida policial

Alfred Bello tinha um parceiro e ele soltou um papo atrás dos tiras
ele e Arthur Dexter Bradley estavam só fazendo uma ronda
ele disse “Vi dois homens sairem correndo, pareciam pesos-médios
pularam dentro de um carro branco com a placa de outro estado”
e a senhorita Patty Valentine apenas assentiu com a cabeça
um tira disse “Esperem um minuto, rapazes, este aqui não está morto”
então o levaram à enfermaria
e embora esse homem mal pudesse enxergar
disseram a ele que podia identificar os culpados

Às 4 da manhã eles arrastam Ruby consigo
o levam para o hospital e o trazem escada cima
o homem ferido olha pra cima através de seu único olho moribundo
diz ” Por que vocês o trouxeram aqui dentro? Não é esse o cara!”
sim, eis aqui a história do Furacão
o homem que as autoridades acabaram culpando
por algo que ele nunca fez
colocando numa cela de prisão, mas houve um tempo
em que podia ter sido o campeão mundial

Quatro meses depois, os guetos estão em chamas
Rubin está na América do Sul, lutando por seu nome
enquanto Arthur Dexter Bradley continua no ramo do assalto
e os tiras estão apertando-o
procurando alguém pra culpar
“Lembra daquele assassinato que aconteceu num bar?”
“Lembra que você disse ter visto o carro fugitivo?”
“Você acha que está a fim de brincar com a lei?”
“Não acha que talvez tenha sido aquele lutador
que você viu correndo pela noite?”
“Não se esqueça de que você é branco”

Arthur Dexter Bradley disse “Não tenho muita certeza”
os tiras disseram “Um rapaz como você precisa de uma folga da polícia
te pegamos por aquele serviço no motel
e agora estamos conversando com seu amigo Bello
agora,você não querter de voltar pra cadeia
seja um sujeito legal
Você estará fazendo um favor a sociedade
aquele filho-da-puta é valente e está ficando cada vez mais
nós queremos botar o rabo dele pra fritar
queremos pregar esse triplo assassinato nele
o cara não é nenhum cavalheiro”

Rubin podia nocautear um cara com apenas um soco
mas nunca gostou muito de falar sobre isso
“É meu trabalho”, diria, “E eu o faço para ser pago
e quando isso termina, prefiro cair fora o mais rápido possível
na direção de algum paraíso
onde riachos de trutas correm e o ar é ótimo
e andar a cavalo ao longo de uma trilha”
Mas aí o levaram para a cadeia
onde tentaram transformar um homem num rato

Todas as cartas de Rubin já estavam marcadas
o julgamento foi um circo de porcos, ele não teve a menor chance
o juiz fez das testemunhas de Rubin bêbados das favelas
e para os brancos que assistiam, ele era um vagabundo revolucionário
e para os negros, apenas mais um crioulo maluco
ninguém duvidava que ele tinha apertado o gatilho
e embora não conseguissem produzir a arma
o promotor público disse que era ele o responsável
e o juri, todos de brancos, concordou

Rubin Carter foi falsamente julgado
o crime foi de assassinato “em primeiro grau”
adivinha quem testemunhou?
Bello e Bradley, e ambos mentiram descaradamente
e os jornais, todos pegaram uma carona nessa onda
como pode a vida de um homem desses
ficar na palma da mão de algum tolo?
Vê-lo obviamente condenado numa armação
não teve outro jeito a não ser me fazer sentir vergonha
de morar numa terra onde a justiça é um jogo

Agora todos os criminosos em seus paletós e gravatas
estão livres para beber martinis e assitir o sol nascer
enquanto Rubin fica sentado como Buda em uma cela de 3 metros
um inocente num inferno vivo
essa é a história do Furacão
mas não terá terminado enquanto não limparem seu nome
e devolverem a ele o tempo que serviu
colocado numa cela de prisão, mas houve um tempo
em que podia ter sido o campeão mundial

12/03/2010

As rosas e o Pavão



Nelson Gonçalves acima, Edinardo abaixo, em plena sexta-feira, depois de duas semanas intensas de trabalheira danada.

07/03/2010

Poema de quem vai


Oxe, menino, que chora.
Por hora é bom se animar.
Passa o tempo, a vida a cantar.

Na hora do gozo, é riso que não cabe,
nem caberá, enfim, no maior esplendor
Cantar as canções que se hão de amar

– que o canto da vida, é vasto, é rir-chorar.

Será que será, que se vai pra ver.
Oxalá!, que se vá, nem que pra ir se for parar.
Vai que vai, que se vai pra passar.

E se for, que se vá o amor de convir(ver),
que querer é o que mais falta
Na alma que para ir se vai de graça

– sobra Veio naquele que chora, tanta graça!


__________________________________


* Poema para Pedro Inácio,
nosso amigo,
Mestre desde antes de o ser academicamente.

** Arte da foto: Tiago Acioli Peixoto.

23/02/2010

Uma escultura que vai pra cima...

Achei a imagem acima no blog A Poção de Panoramix, dos amigos Andrei Barros, Olívia Gomes e Severiano Miranda. Vou reproduzir abaixo o texto do post, antes que o servidor da Poção apronte mais uma daqueles de capitalismo das cavernas com os amigos, e suma com o conteúdo... (muito embora sinta que isso não mais vai acontecer, pois abandonaram, graças aos deuses-dos-bonssensos, o UOLHost - vulgo, "uólhorrost").

"Escadaria para o Paraíso, de Eugenio Merino"


A escultura Escadaria para o paraíso, de Eugenio Merino, foi exposta na ARCO 2010, uma Feira de Arte Contemporânea em Madri. É óbvio que visa a provocar polêmica, colocando, um em cima do outro, religiosos islamita, católico e judeu.

Não me pareceu plasticamente bonita a escultura, mas a idéia é interessante. O escultor, candidamente, diz que visou a representar as religiões no seu desejo da subida ao divino. Explicação boba e dissimulada, a meu ver.

As reações têm sido muitíssimo evidentes. A embaixada de Israel reclamou, associações islâmicas e um e outro sacerdote católicos reclamaram. Era isso que Merino queria, está claro, reações evidentes contra algo que, no fundo, não constitui ofensa alguma. Afinal, esses senhores referem-se todos ao mesmo deus!

Extraído em: http://apocaodepanoramix.com/2010/02/21/escadaria-para-o-paraiso-de-eugenio-merino-2/

21/02/2010

Entre Pirandello e Copérnico

O vídeo acima foi escolhido para acompanhar musicalmente este post. A música é Libertango, de Astor Piazzola, executada pelo violoncelista Yo Yo Ma. Recomendo que se inicie a música junto ao texto transcrito mais abaixo.

Há uns seis meses escrevi um ensaio sobre a quantidade imensa de inutilidades que são escritas por aí, em jornais e, mesmo, na academia. À guisa de tanta inutilidade, aqui neste post vai mais uma – que, ao menos, se pretende descontraída e não sem um pouco de humor e reflexão sobre a nossa posição no Universo.

Possivelmente alguns usarão um dos trechos da citação em mesas de bares, sobretudo o da “boa desculpa para bêbados”, e se o fizerem, tanto melhor, que o post não será de todo inútil – ou, pelo menos, menos inútil que muitas “obras” acadêmicas e jornalísticas que por aí se perde tempo a ler. E, se este post é inútil, no mínimo é um pouco menos por citar uma obra merecedora de atenção, embalada por uma bela música, além de expôr alguma reflexão sobre nós mesmos e nossos costumes.

É que descobri que na sexta-feira, dia 19/02, fez 537 anos que nasceu o astrônomo polonês Nicolau Copérnico, o homem que demonstrou que a terra girava em torno do sol, e que o planeta é redondo. A primeira relação que minha mente colocou em evidência foi o nome do escritor italiano, Luigi Pirandello. Mas o que um teria que ver com o outro? Bem, dentre muitas respostas, a que me soa pertinente, aqui, é uma passagem do livro O falecido Mattia Pascal, do próprio Pirandello.

Segue a passagem, de refinada ironia e profundidade marcante – do autor da também memorável obra Seis personagens à procura de um autor -, no contexto da arrumação que o Padre Elígio Pellegrinotto dava à biblioteca doada pelo Monsenhor Boccamazza ao seu município.

Vale alguns risos e qualquer reflexão para um fim de semana como o que se inicia hoje, sexta-feira, junto ao ano de 2010, que para muitos começa apenas na semana que vem.

“Assim, aos poucos, tomei gosto por esse tipo de leituras. Agora, Padre Elígio diz-me que meu livro deveria seguir o modelo desses que ele vai desencantando na biblioteca, isto é, ter o especial sabor que eles têm. Eu dou de ombros e respondo que não é tarefa para mim. E outra coisa ainda me retém.

Todo suado e empoeirado, padre Elígio desce da escada e vem respirar um pouco de ar fresco, na pequena horta que conseguiu fazer nascer aqui, atrás da abside, protegida, em toda a volta, por fasquias e puas de madeira.

- Ora, meu reverendo amigo – digo-lhe, sentado na mureta, o queixo apoiado no castão da bengala, enquanto ele cuida de suas alfaces. – Não me parece mais, o atual, tempo de escrever livros, nem por brincadeira. No que diz respeito à literatura, como a tudo o mais, devo repetir meu costumeiro estribilho: “Maldito seja Copérnico!

- Oh, oh, oh, que tem Copérnico a ver com isso?! – exclama Padre Elígio, erguendo o busto, o rosto afogueado sob o grande chapéu de palha.

- Tem, sim, Padre Elígio. Porque, quando a Terra não girava…

- Ora esta! Mas se sempre girou!

- Não é verdade. O homem não sabia disso e, portanto, era como se não girasse. Para muitos, ela continua a não girar também agora. Disse que girava, no outro dia, a um velho camponês; sabe o que ele me respondeu? Que era uma boa desculpa para bêbados. Aliás, o senhor também, tenha paciência, não pode pôr em dúvida que Josué fez o sol parar. Mas deixemos isto. Digo que, quando a Terra não girava e o homem, vestido de grego ou de romano, nela fazia boa figura, formando tão elevado conceito de si e comprazendo-se tanto com sua própria dignidade, acredito perfeitamente que pudesse ter acolhida favorável uma narração minuciosa e repleta de inúteis pormenores. Lê-se ou não se lê em Quintiliano, como o senhor me ensinou, que a História devia ser feita para narrar e não para demonstrar?

- Não nego – responde Padre Elígio -, mas, também, é verdade que nunca se escreveram tantos livros, tão pormenorizados, ou melhor, tão carregados das mais secretas minudências, como desde quando, no seu modo de dizer, a Terra começou a girar.

- Está bem: o senhor conde levantou-se cedo, às oito horas e meia em pontoA senhora condessa pôs um vestido lilás, ricamente guarnecido de rendas no pescoçoTerezinha estava morrendo de fomeLucrécia consumia-se de amor… Oh meu Deus do céu! Que importância isso pode ter para mim? Estamos ou não estamos num invisível piãozinho, para o qual um fio de sol serve de chicote, num grãozinho de areia enlouquecido, que gira e continua a girar, sem saber por quê, sem chegar nunca a destinação, como se achasse muito divertido girar assim, para fazer-nos sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e, no fim, fazer-nos morrer (a miúdo, com a consciência de ter cometido uma série de pequenas tolices), após cinquenta ou sessenta giros? Copérnico, Copérnico, meu caro Padre Elígio, estragou a humanidade irremediavelmente. Agora, todos já nos adaptamos, aos poucos, à nova concepção de nossa infinita pequenez e a nos considerarmos menos do que nada, no Universo, com todas as nossas lindas descobertas e invenções. Que valor quer, então, que tenham as notícias, já não digo das misérias privadas, mas das nossas calamidades gerais? Histórias de minhocas, as nossas, agora. Leu a respeito daquele pequeno desastre nas Antilhas? Nada de importante. A Terra, coitada, cansada de girar, como quer aquele cônego polonês, sem qualquer finalidade, teve um pequeno movimento de impaciência e soprou um pouco de fogo por uma de suas muitas bocas. Sabe-se lá o que foi que lhe agitou essa espécie de bílis! Talvez a estupipez dos homens, que nunca foram tão cacetes como agora. Resultado: vários milhares de minhocas torradas. E toca para a frente! Quem fala mais nisso?

Padre Elígio Pellegrinotto, porém, faz-me observar que, por mais esforços que empreguemos no cruel intento de arrancar, de destruir as ilusões que a previdente natureza criou para o nosso bem, não o conseguimos. Por sorte, o homem distrai-se facilmente.

Isso lá é verdade. Nosso Município, em certas noites marcadas na folhinha, não manda acender os lampiões e, com frequência, se o tempo é nublado, nos deixa no escuro.

E isso significa, no fundo, que nós, ainda hoje, acreditamos que a lua esteja no céu tão-só para dar-nos luz à noite, tal como o sol de dia, e as estrelas, somente para oferecer-nos um maravilhoso espetáculo. Pronto. E, com muita frequência, esquecemos que somos átomos infinitesimais, passamos a respeitar-nos e admirar-nos reciprocamente e somos capazes de engalfinhar-nos por um pedacinho de terra ou de queixar-nos de certas coisas que, se estivéssemos compenetrados do que somos realmente, deveriam parecer-nos desprezíveis misérias.”

Trecho de “O Falecido Mattia Pascal”
Pág. 15-17 (Abril Culrural, 1978)

- Luigi Pirandello