25/12/2008

Na vida e no jogo

"Feliz o que não insiste em ter razão, pois ninguém a tem ou todos a têm."

Jorge Luis Borges - Fragmentos de um Evangelho Apócrifo

Tela - Paul Cezanne

16/12/2008

Um encontro entre Beethoven e Mefistófeles

Quando Beethoven encontrou-se com o poeta Goethe, o que teria este, dito aquele, ninguém sabe - afora algumas lendas, como por exemplo, a da frase “Uma criatura completamente indomável”.

De quem, ou de quê, estaria a falar von Goethe para van Beethoven? O que quis dizer com aquela frase?

Falava dos versos do Fausto? Ou, talvez, do instante em que criara os 4 versos pronunciados pela voz de Mefistófeles, no momento de sua autoapresentação, em resposta à pergunta do Dr. Fausto?

FAUSTO
Que nome tens?

MEFISTÓFELES
Questão de pouco peso
Para quem vota aos termos tal desprezo
E que, afastado sempre da aparência,
Dos seres só procura a essência.

No verso “Para quem vota aos termos tal desprezo“, Mefistófeles refere-se (segundo a nota nº 10 de Marcus Mazzari à tradução de Jenny Klabin Segall, da primeira parte do Fausto, publicada pela Editora 34 - pág. 139) ao desprezo de Fausto pelo “Verbo”, pela “Palavra”, e pelos nomes e “termos” em geral.

Mefistófeles conhece o desprezo de Fausto aos "termos", dando a entender que presenciara, disfarçado de cão, os momentos em que Fausto traduzia o início do Evangelho segundo São João.

Na sua aposta com o Altíssimo, o demônio já indicava ser conhecedor das coisas que agitavam o peito do Dr. Fausto - seu desejo irrefreável por todos os conhecimentos dos mundos.

O ALTÍSSIMO
Do Fausto sabes?

MEFISTÓFELES
O doutor?

O ALTÍSSIMO
Meu servo, sim!

MEFISTÓFELES
De forma estranha ele vos serve, mestre!
Não é, do louco, a nutrição terrestre.
Fermento o impele ao infinito,
Semiconsciente é de seu vão conceito;
Do céu exige o âmbito irrestrito
Como da terra o gozo mais perfeito,
E o que lhe é perto, bem como o infinito,
Não lhe contenta o tumultuoso peito.

O ALTÍSSIMO
Se em confusão me serve ainda agora,
Daqui em breve o levarei à luz.
Quando verdeja o arbusto, o cultor não ignora
Que no fundo fruto e flor produz.

MEFISTÓFELES
Que apostais? perdereis o camarada;
Se o permitirdes, tenho em mira
Levá-lo pela minha estrada!

O ALTÍSSIMO
Enquanto embaixo ele respira,
Nada te vedo neste assunto;
Erra o homem enquanto a algo aspira.

MEFISTÓFELES
Grato vos sou, já que um defunto
Não é lá muito do meu gosto;
Gabo aos que têm viço e verdor no rosto.
E com cadáveres evito o trato;
Sou como gato, em tal, com rato.

O ALTÍSSIMO
Pois bem, por tua conta o deixo!
Subtrai essa alma à sua inata fonte,
E leva-a, se a atraíres pra teu eixo,
Contigo abaixo a tua ponte.
(...)

Principiou-se, então, as insidiosas tentações do demônio para carregar pro seu caminho a alma de Fausto.

Trajando-se como um simples estudante viajante, o demônio pronunciou de sua boca as seguintes palavras aos ouvidos de Fausto:


MEFISTÓFELES

Sou parte da Energia
Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.
(…)
Parte da parte eu sou, que no início tudo era,
Parte da escuridão, que à luz nascença dera,
À luz soberba, que, ora, em brava luta,
O velho espaço, o espaço à Noite-Mãe disputa;

Com tais Palavras, Mefistófeles abre a alma de Fausto.

Com quais Palavras, haveria de abrir a alma de Beethoven?

Alguns anos antes, Beethoven havia criado a 5º Sinfonia em Dó Menor. A angústia do 1º movimento me remete a possíveis presságios da fatalidade que havia de lhe acometer anos depois - quando um de seus sentidos seria-lhe extraído.

Beethoven buscava um encontro com Goethe bem antes do mal lhe usurpar um sentido. Nos anos que se seguiram ao encontro, a surdez saiu da espreita e isolou os ouvidos de Beethoven do resto mundo. 12 anos depois, surdo, deu aos Homens a mais grandiosa sinfonia que já se ouviu até então, e talvez pra sempre: a 9º Sinfonia em Ré Menor.

Aproximando os destinos de Beethoven e do Dr. Fausto, visualizo algumas possibilidades de justaposição. Fausto entregou a alma ao Diabo, em troca de todo o conhecimento do mundo, de todos os tempos. Por que Bethoven não poderia ter ousado trocar a audição pela assinatura de seu nome na maior Sinfonia já composta no mundo, em todos os tempos?

“Assim queremos; assim será.”

MEFISTÓFELES
Daquilo que aos sentidos praz,
Numa hora, mais desfrutarás
Do que, em geral, num ano inteiro.
Dos meigos gênios os cantares,
Os lindos quadros que diluem nos ares,
Não são mendaz, mágica folga.
O teu olfato se há de deliciar,
Distrair-te, após, teu paladar,
E teu sentir, enfim, se empolga.
O prólogo sem mais se abstrai,
Estamos juntos, principiai!

Há coisas impossíveis de serem ditas - ou descritas. Elas pertecem à ordem das coisas que levam o nome de “Inefáveis”. Às coisas dessa ordem podemos inventar senrtidos. Significá-las. Brincar com elas, mesmo levando-as por demais em sério.

Já que inefáveis, por excelência imagináveis.

Escreveu das coisas inefáveis, o poeta Cruz e Souza:

Inefável

Nada há que me domine e que me vença
Quando a minh’alma mudamente acorda…
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.

Sou como um Réu de celestial Sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
D’estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros
E tudo vejo dos encantos raros
E de outra mais serenas madrugadas!

todas as vozes que procuro e chamo
Ouço-as dentro de mim, porque eu as amo
Na minh’alma volteando arrebatadas!

Pois a alma mudamente acorda diante da grandiosa e enérgica obra de Beethoven. Assustadora e apaziguadora. Leve e densa. Profunda e magicamente regozijante.

Atingindo angústias e serenos. Veio longe, até nós, e até nós.

_______________________________________________

PS: hoje, 16 de dezembro de 2008, faz 238 anos do nascimento de Beethoven.

04/12/2008

Entre o Celo e a Tela

Entre o Celo e a Tela,
O céu e a terra se (como) movem...
Paira, translúcido, o olhar-de-ouvido
Dolorido e Colorido que
Agiganta a pequenez de quem,
Em letras, imprime impressões-de-Tez.

É no silêncio que silencia o sereno;
Desvendando em tom-de-cores,
O tom da música-inimaginável.
Insondável é Sondado o som.
Sua ausência assombra...
À espreita, que acorde ataca?

Ata-se, num gesto, o sono
Da angústia-de-poeta-profundo
Que penetra o ébrio instante da Criação.
Com mil braços cria a mão-frenética!
Asceta do ascetismo servil:
Assim se olvida a vida vil.

No Som-das-Cores, a Arte dança.
Tem Dó de Si, este poeta-Bemol
Que ao Sol se encanta...
Entre o Olho e a Obra,
No ouvido sobra a Sombra-invisível

Do Pincel-batuta que rege-em-Traços...

No tempero da Orquestra-Braços
Tem, pelo menos, mil Laços
O destempero insólito do Celo-Solo.
Ledo engano-de-poeta-Cego-Surdo...
Solo é o poeta-Solitário,
Que desenha no imaginário

O Tom-de-Acordes ao Som-de-Cores


______________________

* Poema-ensaio inspirado e dedicado à tela do pintor Roberto Ploeg, "O Violoncelista" (Óleo sobre tela, 120 x 105).

14/11/2008

A Genialidade da Multidão

Há bastante deslealdade, ódio,
violência,
Absurdo no ser humano
comum
Para suprir qualquer exército em qualquer
dia.
E O Melhor No Assassinato São Aqueles
Que Pregam Contra Ele.
E O Melhor No Ódio São Aqueles
Que Pregam AMOR
E O MELHOR NA GUERRA
--FINALMENTE--SÃO AQUELES QUE
PREGAM
PAZ

Aqueles Que Pregam DEUS
PRECISAM de Deus
Aqueles Que Pregam PAZ
Não têm paz.
AQUELES QUE PREGAM AMOR
NÃO TÊM AMOR
CUIDADO COM OS PREGADORES
Cuidados com os Sabedores.

Cuidado
Com Aqueles Que
Estão SEMPRE
LENDO
LIVROS

Cuidado Com Aqueles Que Detestam
Pobreza Ou Que São Orgulhosos Dela

CUIDADO Com Aqueles Que Elogiam Fácil
Porque Eles Precisam De ELOGIOS De Volta

CUIDADO Com Aqueles Que Censuram Fácil:
Eles Têm Medo Daquilo Que
Não Conhecem

Cuidado Com Aqueles Que Procuram Constantes
Multidões; Eles Não São Nada
Sozinhos

Cuidado
Com O Homem Comum
Com A Mulher Comum
CUIDADO Com O Amor Deles

O Amor Deles É Comum, Procura
O Comum
Mas Há Genialidade Em Seu Ódio
Há Bastante Genialidade Em Seu
Ódio Para Matar Você, Para Matar
Qualquer Um.

Sem Esperar Solidão
Sem Entender Solidão
Eles Tentarão Destruir
Qualquer Coisa
Que Seja Diferente
Deles Mesmos

Incapazes
De Criar Arte
Eles Não Irão
Compreender Arte

Eles Vão Considerar Sua Falha
Como Criadores
Apenas Como Uma Falha
Do Mundo

Incapazes De Amar Completamente
Eles Vão ACREDITAR Que Seu Amor É
Incompleto
E ELES VÃO ODIAR
VOCÊ

E Seu Ódio Será Perfeito
Como Um Diamante Brilhante
Como Uma Faca
Como Uma Montanha
COMO UM TIGRE
COMO Cicuta

Sua Mais Fina
ARTE

* Poema de Charles Bukowski

23/10/2008

Na Plenitude da Metade


Eu te vi, Século meu!
E, te olhei profundamente...
Olhei-te das aparências às entranhas.
E, senti que te olhar era inútil
– Que nada poderia fazer.

Nem falar, nem tocar, nem gritar-te:
Aonde vais?

Percebi que tu ias mal, Século meu...
Que as coisas em ti não se moviam,
Ao mesmo tempo em que não paravam
Nunca!

Tuas velocidades escondem tuas lerdezas.
E, tu bem gostas, Século meu...
Brincas com cores,
Como velhos com dissabores.

Vejo-te dançar de mãos atadas e olhos vendados
– Mas, sei: tu tens hábeis pés e ouvidos prendados.

Habitas uma redoma, Século meu!
E, ela é de límpido cristal.
Poucos olhos podem vislumbrá-la,
Assim como poucos dedos ousam-te tocar.

Tu definhas
(Não parece, mas tu cais...)

Aonde vais, Século Meu?

17/10/2008

...

"um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lórca um éluard um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores"


"quatro dias sem te ver

e não mudaste nada
falta açúcar na limonada
me perdi da minha namorada
nadei nadei e não dei em nada
sempre o mesmo poeta de bosta
perdendo tempo com a humanidade"

* Pedaços de P. Leminski

11/10/2008

A fome de dias depois

Aquele ser não tinha nome. Nem números. Ouvira certa vez um nome, que já lhe parecia, agora, algo estranho e irreconhecível. De um reconhecimento breve e distante, que não sabia identificar ao certo de onde provinha. Tudo lhe era estranho.

Comia restos quando restava algo nos tambores de plástico que repousavam gordos nos magros asfaltos. Dia a dia, mais menos restos lhe restava. Sobravam-lhe as faltas de resto, que devorava como se fossem belos pratos nobres. Não distinguia gostos, pois os deuses lhe subtraíram as faculdades do paladar.

Sua sorte é que lhe restavam as pernas (apesar de só possuir um braço e meio). Embora magras, serviam-lhes para seu único objetivo: andar em busca de restos de pedaços.

E assim passavam seus dias trôpegos.

Quando, porém, viu-se na metrópole dos desertos, ele já não encontrava nem pedaços de restos. Menos e menos tambores de restos lhe cruzavam o caminho. Sedento de fome (que lhe era o único motor de sua existência), ele caminhava.

E caminhava, caminhava...

Já não tinha resto com que se deleitar. Sobravam-lhe todas as faltas de pedaços. Na falta plena, passou a comer seus próprios produtos: as fezes.

Porém, a cada dia obrava menos. Passou, então, a armazenar os excedentes de sua produção. Estocava-os para comer sempre que sentisse fome. E comia embuído com muita dignidade aquela pasta marrom que acumulava em sacos plásticos envelhecidos pelo calor e pelo tempo.

No entanto, percebeu que a cada dia sua produção diminuía mais e mais. Lembrara-se da única vez que haviam lhe ensinado alguma coisa. Lembrava, ainda que vagamente, uma frase:

"Seus órgãos consomem seus alimentos."

Não sabia ao certo o que eram órgãos. Mas, sabia que essas coisas estavam dentro de seu corpo. Elaborou, entredentes, um plano, chegando à uma conclusão:

"Ou acabo com esses malditos órgãos, ou eles acabam com meus alimentos."

E, assim, detalhou seu plano riscando desenhos no chão das areias-de-seu-deserto.

Assim, iniciou seu plano, rasgando a barriga e retirando pedaços de carne (que sangravam muito). Fora juntando esses pedaços enquanto retirava outros mais. Ao fim do processo, estava tonto e com fome.

Recostou as carnes da barriga, e envolveu-as com um pano velho e sujo que havia preparado especialmente para aquela ocasião.

Ao fim, deitou para descansar um pouco. Minutos depois, acordou, e sentia muita fome. Vendo todas aquelas suculentas carnes que repousavam ainda quentes ao seu lado, devorou-as como nunca antes havia se deleitado...

No dia seguinte, percebeu que de fato sua massa fecal havia aumentado. Percebeu que seu idéia tinha sido genial, e dado mais do que certo.

Passou alguns dias sem andar, pois estava muito fraco. Mas, logo se sentiu revigorado - e obrando como nunca. Jamais tivera banquetes tão ricos.

Ele regressou de seu deserto, para ter com os outros seres. Sua aparência nunca fora das melhores. Agora, então, estava pior que nunca. Envelhecera rapidamente. No seu trajeto, retornando do seu deserto, não encontrara nenhum'alma viva - que dirá corpos...

Desfaleceu-se pouco a pouco, nas bordas de seu deserto. Avistara entre o sol e a sombra, um corpo de homem. Era semelhante a um componente de algum órgão do ministério, pois vestia farda, e estampava um brilhante crachá...

Tal homem, possesso que estava de piedade, resolveu dar cabo no sofrimento que supunha ser o daquele ser, aplicando-lhe golpes certeiros em sua cabeça, com um porrete de pau enorme - em nome de Deus.

Dias depois, estavam alguns outros seres a devorar aquele corpo-sem-órgãos.

O Capitão Fracasso

"Entretanto, se não agarrasse com unhas e dentes tal ocasião, provavelmente nunca lhe ocorreria outra semelhante. Afinal de contas, era nada mais nada menos que o sonho de sua vida."

* Pedaço de "O Capitão Fracasso", de Téophile Gautier. Obs: livro que abdiquei a leitura aos 15 anos; e, agora, resolvi ler - não por destino, nem por acaso...

30/09/2008

30 de setembro de 1888: 1º dia da Nova Era

Por Sr. Anísio
Extraído em (A)berração

Hoje, exatamente, estamos há cento e vinte anos (contados, ainda no falso calendário cristão) que Friedrich Wilhelm Nietzsche declarou o primeiro dia do novo calendário: “O resto nasce a partir daqui”, encerra o último mandamento das novas tábuas.

Não sem uma gota de tristeza olho o retrato morto do poeta; leio sua vivíssima poesia, mais ainda, mais além. nem poeta, nem filósofo, nem filólogo, nem homem, além, mais ainda, mais além.

Entretanto, gostaria de poder falar a ti, meu caríssimo, e, em vez de dar-te boas novas, não, ao contrário, só temos más velhas a contar. a humanidade comportou-se exatamente como teus pesadelos piores não podiam imaginar, o desinteresse da ciência desceu ao senso comum e criou o jornalismo; a moral de rebanho (essa já não tinha aonde descer) infectou o resto da sociedade e no cerne da “opinião”, da “pluralidade”, do “respeito ao próximo”, constrange absolutamente tudo que não lhe é espelho: imagem morta e monótona repetida, e repetida.

O teu Sim! o Grande Sim, hoje, cada vez mais raro, rarefeito e a vida escorre e esparrama-se nas entrelinhas de palavras velhas e desgastadas. comprimida entre máquinas que de longe parecem pessoas, e pessoas que de perto parecem máquinas...

O Grande Sim, o teu sorriso caríssimo ecoa de alturas inimagináveis, o teu zombeteiro Zaratustra, o teu disangelium... Há, mil infernos! como é difícil dizer sim hoje, é difícil saber o que é a vida mesma, pois, ela vive em brechas estreitíssimas, provavelmente invisíveis ao olho – sempre nu e despreparado a ver o que não sabe.

Celebra-se hoje, cento e vinte anos depois, ainda a madrugada do segundo dia.
espera-se, impaciente e ruidoso – ainda demasiado próximo do sonho – a aurora do segundo dia:

“Datada do dia da Salvação: primeiro dia do ano Um (em 30 de Setembro de 1888, pelo falso calendário).

Comentário meu:
Amanhã, 1 de outubro, começa nosso 2º dia. Evoé!

25/09/2008

Carta aos Reitores das Universidades Européias

“Senhores Reitores,
Na estreita cisterna que os Srs. chamam de “Pensamento”, os raios espirituais apodrecem como palha.

Chega de jogos da linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto.

Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito.

Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com um caráter de revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu.

Mas a raça dos profetas extinguiu-se. A Europa cristaliza-se, mumifica-se lentamente sob as ataduras das suas fronteiras, das suas fábricas, dos seus tribunais, das suas universidades. O Espírito congelado racha entre lâminas minerais que se estreitam ao seu redor.

A culpa é dos vossos sistemas embolorados, vossa lógica de 2 mais 2 fazem 4; a culpa é vossa, Reitores presos no laço dos silogismos. Os Srs. fabricam engenheiros, magistrados, médicos aos quais escapam os verdadeiros mistérios do corpo, as leis cósmicas do ser, falsos sábios, cegos para o além-terra, filósofos com a pretensão de reconstituir o Espírito. O menor ato de criação espontânea e um mundo mais complexo e revelador que qualquer metafísica.

Deixem-nos pois, os Senhores nada mais são que usurpadores. Com que direito pretendem canalizar a inteligência, dar diplomas ao Espírito?

Os Senhores nada sabem do Espírito, ignoram suas ramificações mais ocultas e essenciais, essas pegadas fósseis tão próximas das nossas próprias origens, rastros que às vezes conseguimos reconstituir sobre as mais obscuras jazidas dos nossos cérebros.

Em nome da vossa própria lógica, voz dizemos: a vida fede, Senhores. Olhem para seus rostos, considerem seus produtos. Pelo crivo dos vossos diplomas passa uma juventude abatida, perdida.

Os Senhores são a chaga do mundo e tanto melhor para o mundo, mas que ele se acredite um pouco menos à frente da humanidade.”


Esta Carta foi excrita por Antonin Artaud.

21/09/2008

Das Mulheres e das Flores

Ah! se mulheres fossem flores!
Mas, não são...

Seriam mais espinhos se menos flores fossem?
Mas, se nem espinhos nem flores,
Com quantas dores
Se conquista uma mulher?

Seriam vós, mulheres, de toda em todas
Amores?
Ou há em vós mais paredes,
Ainda,
D'onde brotam muito mais
Orquídeas?

Em teus cadafalsos
Empunhais
Afiados punhais,
Nos quais demasiados
Pescoços cortais?


E, em quantos pescoços
Não cravejam espinhos?
Pescoços serão como talos
de Rosas-Espinhudas?

Ou serão os pescoços fragéis como homens culpados,
Nos quais despejais tuas sangüinolentas
Punhaladas verborrágicas?

Há, nas Gargantas, nós,
Como há espinhos em vós.


Mas de espinhos só se espera
Perfurações de supefície;
Breves arranhões...

Mais densos e profundos são os cortes

Dos Floristas
Que te doam flores Mortas.

Vós apreciais buquês de mil mortas Flores
Doadas com mil versos copiados
E anexados em cartões comprados
Na papelaria do burguês?


Ou apreciar-te-ias a ti mesmo
Na altivez desses buquês...
Como te aprecias deveras frente ao espelho,
Crendo ser, das flores, a mais
(Segunda mais...) Bela,
Quando passas espinhos de plástico
Por entre as madeixas,
Enquanto as bochechas
Se roseam de Blush-cor-de-rosa-vaidade?

Ah! se mulheres fossem flores!
Mas, não são...
E, isso é ventura!

03/09/2008

VouAndo

Sim. Dormi na calçada.
Na calçada da tua cama.
Nas franjas da tua alçada,
Acordei.

Dei por mim e nada.
Restava apenas meu caco.
Meu pedaço de pedaço.
Levantei.

Hei de partir calado?
Sem verdes?
Nem azuis.
Mas fui - parado...

Sim. Parti de ti.
Sem sair daqui,
Fui para lá:
Insólito.

Meu delito foi pensar.
Pouco fiz.
Tanto faz.
O que foi, foi sem ser.
Sei que não sou,
Sempre estando.
Parado, ando.

E vou...

E ando.
Parado estando
Sempre sou.
Não que sei ser sem.
Foi.
Foi que o faz tanto.
Fiz pouco pensar
- foi delito meu.

E vou...

25/08/2008

Lei contra o cristianismo


Datada do dia da Salvação: primeiro dia do ano Um (em 30 de Setembro de 1888, pelo falso calendário).

Guerra de morte contra o vício: o vício é o cristianismo

Artigo Primeiro – Qualquer espécie de antinatureza é vício. O tipo de homem mais vicioso é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não há razões: há cadeia.

Artigo Segundo – Qualquer tipo de colaboração a um ofício divino é um atentado contra a moral pública. Seremos mais ríspidos com protestantes que com católicos, e mais ríspidos com os protestantes liberais que com os ortodoxos. Quanto mais próximo se está da ciência, maior o crime de ser cristão. Conseqüentemente, o maior dos criminosos é filósofo.

Artigo Terceiro –
O local amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco deve ser demolido e transformado no lugar mais infame da Terra, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Lá devem ser criadas cobras venenosas.

Artigo Quarto – Pregar a castidade é uma incitação pública à antinatureza. Qualquer desprezo à vida sexual, qualquer tentativa de maculá−la através do conceito de “impureza” é o maior pecado contra o Espírito Santo da Vida.

Artigo Quinto – Comer na mesma mesa que um padre é proibido: quem o fizer será excomungado da sociedade honesta. O padre é o nosso chandala – ele será proscrito, lhe deixaremos morrer de fome, jogá−lo−emos em qualquer espécie de deserto.

Artigo Sexto –
A história “sagrada” será chamada pelo nome que merece: história maldita; as palavras "Deus”, “salvador”, “redentor”, “santo” serão usadas como insultos, como alcunhas para criminosos.

Artigo Sétimo –
O resto nasce a partir daqui.

Nietzsche – O Anticristo

PS: hoje completam 108 anos do falecimento desse cara aí...

Elegia do anti-se

Sê para si, só; sê
Para si só ser
Se só si for
Ser o que é; será?

Pois, sê de todo si em si
Para apenas si - em si.
Na sine qua non falta de si
Ser não é de todo se...

Se ser é, sê si não.
Senão, ser em si
Imaginação perde-se
A mera imagem fictícia de si.

Falsetar-se de si
(Que já, per si, falso é em si)
É um engano Sim.

Sim. Sim. Sim.
Ausência de si:
É si em si.

18/08/2008

Poemas antigos...

são sempre novos para quem ainda não os...

10/08/2008

Nas entranhas da Estupidez

Do alto das montanhas assisto paraperplexamente
A um jogo de vai-não-vem estupidamente
mesquinho.

É mergulhando em minha taça de vinho
Que busco discernimento: sozinho.
Sem pretender entendimento
Observo olhos dissociados de bocas:
Um chora enquanto o outro sorri
- Forçado.

Como quebrar esse doloroso cadeado?
Como martelar tal rancoroso orgulho?
Como destruir esse Ídolo-nojo que nos destrói?

Vês passar a passos lentos e ardilosos
A caminhar silentes e impiedosos
Os dejetos repugnosos desses seres
Asquerosos e putrefactos,
Com seus dentesafiados e podres,
Escorrendo seus ranhos por sob
Seus negros e milhares
De olhos de cancros e enxofres? ...

Sentado na arquibancada eu assisto impaciente
A Ventura da Estupidez, que vence
Com máscaras discretamente luminosas,
A prova dos fatos: mas..., que fatos?
Não há fatos. Há idéia de fatos.

Absorto observo a autodestruição carcomendo
Sonhos.
Dos mais belos aos mais torpes:
Como um cão devorando restos de um coração
Encolhido de frio na relva de uma praça
Desértica e escura.

As mentes se digladiam na Arena do Imaginário:
Apegam-se às pueris verdades;
Convertem mentiras em fatos;
Ressoam trombetas como se fossem harpas;
Ardilosamente se fazem tímpanos
Quando não passam de flautas...
É assim que age a Estupidez:
Como um maestro que rege A última música.

A Idiotia, prima-irmã da Estupidez,
Paira sublime nesta desarmonia.
Intervém com seus lampejos nos desejos,
Nos quereres mais impetuosos,
E silencia qualquer grandeza.

- E a estupidez, peçonha da alma, sorri!
“Vamos, meus amigos! Destruam-se enquanto mastigo pipocas!”

Assim se concretiza um fim etéreo:
Um fim sem fatos, que de fato finda.

- E a estupidez, peçonha da alma, sorri!
“Sorria: você está sendo enganado!”

Com ardil, o imaginário age:
Elucubrando a mais vil imagem.

E machuca, e dói, e corrói pelas entranhas
As estranhas Mentiras que cremos Verdade.

09/08/2008

Aos solitários desertos

Estar em casa numa noite tão agradável como a de hoje pode parecer um absurdo. É possível que seja. E, se for, de fato, que tal Absurdo seja absurdamente mais agradável que a própria noite!

SIM. SÓ.


Só assim se abraça com ímpeto a Solidão. Os Desertos são plenos, quando a Solidão assola. Parece tão difícil amar a solidão. Pois amo a minha como amam os crentes a sua crença.

Acredito na beleza desértica das solidões de espíritos solitários. Gostaria de poder cantar como Björk: " Eu me sinto em casa sempre que o desconhecido me cerca", mas é apenas nas sendas da minha solidão que me sinto em casa - e, mais ainda quando é em casa que estou só.

O resto... é deleite de estranhamento.

Estranho deleite esse de solidificar a solidão e os próprios desertos. Pois é aí que se revelam as maiores auto-paixões. Sim, adoro-me como adoro minha solidão, e detesto-me como detesto a frieza dos desertos, pois que o meu corpo fora habituado ao calor desta cidade que acolho como uma extensão de meu próprio deserto, de minha própria solidão.

Sim, sou amigo de minha solidão. As linhas nietzscheanas certamente fizeram-me ver com mais clareza a escuridão de meus desertos.

"O deserto cresce. Ai! daquele que oculta desertos."

As leituras que tenho feito de Rilke também estão me fazendo bem: ajudam-me a suportar, e até mesmo gostar, da minha solidão, que pesa.

"... se perceber então que a solidão é grande, alegre-se com isso; pois o que (pergunte a si mesmo) seria uma solidão sem grandeza? Existe apenas uma solidão, e ela é grande, nada fácil de suportar. Acabam chegando as horas em que quase todos gostariam de trocá-la por uma união qualquer, por mais banal e sem valor que seja, trocá-la pela aparência de uma mínima concordância com o próximo, mesmo que com a pessoa mais indigna... No entanto, talvez sejam justamente essas as horas em que a solidão cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o crescimento de um menino e triste como o início da primavera. Mas, isso não deve confundi-lo. O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é preciso conseguir isso."

30/07/2008

Um passeio de formiga em gaiola-urbana

Escrever. Escrever. Escrever. Cotidianamente, escrever. Sobre o quê? Discutir os grandes temas? Mas, os grandes temas, por vezes, são tão pequenos. Tão insignificantes. Pois que hoje os pequenos temas sejam grandes!

É, escrever é um gesto que por vezes é sublime. Em outras vezes pode ser um fiasco. Muito disso envolve a questão temática sob a qual o escritor se debruça. Afinidade, desejo e conhecimento de causa certamente influenciam deveras nos resultados finais desse gesto: o ato fatídico da escrita.

Na tarde de ontem, andei durante horas no centro da cidade do Recife. O motivo? Coisas burocráticas - menores. Não importa. Mas, caminhei, ou melhor, caminhei não, andei mesmo. Pra lá e pra cá, como uma formiga que carrega seus grãos de acúcar à procura cega da tanajura perdida. Digo formiga pois essa foi a sensação que tive ontem. Senti-me, de fato, uma formiga.

Enquanto caminhava, digo, andava, eu olhava para o rosto daquelas milhares de pessoas que passavam por mim com ar preocupado, outras nem tanto, e eu pensava: “Porra, como é difícil estar só no meio de uma multidão como essa!”

Mas, essa sensação de solidão-na-multidão pode também não ser tão ruim. Sentia-me alheio àquelas tantas vidas. Sentia-me eu-alheio - por isso, mais leve...

Um passante invisível. Um mero passante que flutua e observa. Nada mais. E, como isso me pareceu um alívio! Era como se eu não tivesse nada a ver com aquelas vidas. Mas tenho, inevitavelmente. Não a ligação intrínseca que os laços consangüíneos nos impõem. Mas, uma ligação invisível. Um insólito elo - como a mão que toca outra em pensamento... como a mão que acarinha um rosto em devaneio. Compartilhamos a mesma miséria humana, a mesma poética suja e bela, em nossos centros urbanos. Todos compartilhamos belezas, agruras, poesia e um certo instinto de rebanho. Andamos em direção… Andamos sem nos ver, sem nos tocar, sem nos sentir. Andamos... Por acaso, ou ventura, uma ou outra vez tocamos nossas “antenas de formigas”, e mais nada. Há possibilidades de um devir-encontro, mas é raríssimo.

É como se vivêssemos em mundos paralelos. Em cidades diferentes. Em diferentes cidades invisíveis. Como se o Recife fosse uma cidade-caixa, dentro de uma outra infinidade de cidades-caixa. Talvez João Cabral de Melo Neto tenha captado através da imagem da mulher, a própria imagem da cidade que vivenciei ontem. Em seu poema "Mulher Vestida de Gaiola", João Cabral enuncia:

“(…) E assim como tu resides / nessa gaiola, cingida, / o vasto espaço que sobra / de tua gaiola-ilha // é como outra gaiola / igual que o mar: sem medida / e aberto em todos os lados / (menos no que te limita). // Pois nessa gaiola externa / onde tudo tem cabida, / onde cabe Pernambuco / e o resto da geografia, / / três bilhões de humanidade / e até canaviais de usina / sei que se debate um pássaro / que a acha pequena ainda. (…)”

E, eu pensava: “É provável que Recife seja uma gaiola. Ou melhor, uma ‘mulher vestida de gaiola’. Ou não. Que importa?! Recife oode ser mesmo é uma fruta. Sim, uma fruta trespassada por uma espada chamada Rio Capibaribe (peço de novo licença de me ilustrar as impressões com uma imagem de João Cabral). Uma espada-cão - embora, sem plumas.

Acontece que eu andei, andei, andei, e não consegui resolver meus impasses com a burocracia. Por um acaso (?) encontrei uma amiga muito querida, quando entrei, guiado pelo inconsciente, em uma rua que nem sequer estava em meu itinerário - mas, eu, em meu estado de formiga-presa em uma gaiola-caixa chamada Recife, andava, andava, andava, quase um autômato. E, como aquele encontro me fez bem! Cotidianamente falamos com muitas pessoas, por telefone, pela internet, mas poucas vezes nos encontramos.

Ao chegar em casa, eis que encontro o tal documento, após horas e horas procurando-o, e mais horas e horas andando. O documento sempre esteve lá. Mas, não encontrei de forma alguma - a não ser quando já nem esperava mais nada.

Dissipou-se nesse momento, como um abrir-de-caixas, cujas abas se desabrocham magicamente, permitindo-nos entrever seu conteúdo. Senti que precisava mesmo ter andado. Precisava ver na rostidade da multidão, seu retrato de formiga-engaiolada.

E, pra quê? Pra escrever, apenas - talvez... Pois escrever é um gesto, acima de tudo, um gesto. Como todo gesto, pode ser bem executado ou não. E, nossa escrita sempre irá refletir nossa alma, nosso estilo. O estilo, disse certa vez Schopenhauer, é a fisionomia do espírito.

Certamente, na maior parte dos casos, sinto-me insatisfeito com meus textos. Em outras não. A variação de humor e estados-de-espírito sempre estão impressos nas letras coladas na tela - ou no papel - como se afixam sombras negras nos papéis de cópias mau tiradas.

19/07/2008

Afterglow

o ocaso é sempre comovente
por mais pobre ou berrante que seja,
porém mais comovente ainda
é o fulgor desesperado e final
que enferruja a planície
quando o último sol mergulhou.
é doloroso manter essa luz tensa e diversa,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e cessa de repente
quando notamos sua falsidade,
como cessam os sonhos
quando sabemos que sonhamos.


Pedaço de "Fervor de Buenos Aires" - Borges, J. L.

Telemarketing

- Alô? Ah... Tudo bom?
- ...
- É que eu quero cancelar esta linha de telefone.
– O nome do senhor? Seu número de telefone ? Identidade? CPF?
– Ãn... talvez... acho que...
– Qual o motivo da sua decisão?
– Ãn... talvez... acho que não tenho motivos.
- Sr., qual o motivo da sua decisão?
- Olha, moça, eu não tenho motivos.
- Isso não é um "motivo", Sr.!
- Eu sei, mas é que... A senhorita é casada? Filhos? Namorado?!
- Sr., isso não vem ao caso.
- Caso. Mas é que...
- Sr., qual o seu motivo?
- Eu não tenho motivos.
- Então, Sr., tenha uma boa tarde, seu telefone não poderá ser cancelado.
- Mas, senhorita, o telefone é meu e eu não o quero mais!
- Por qual motivo o Sr. não o quer mais?
- Não tenho motivo!
- Então, Sr., tenha uma boa tarde, seu telefone não poderá ser cancelado.
- Mas, que merda! Eu tenho um motivo pra você: minha vida é uma bosta.
- Sr., isso não é um motivo para cancelar seu telefone.
- Mas, o telefone é meu.
- Da nossa operadora, Sr.
- Ok, o telefone é dessa droga de operadora, mas o motivo é meu!
- Qual motivo, Sr.?
- A MINHA VIDA É UMA MERDA!!!
- Sr., isso não é um motivo para cancelar seu telefone.
- Certo, certo, a senhorita venceu. Vou lhe dar um bom motivo, ok?
- Aguardo ansiosamente.
- Eu não quero mais esse telefone. Pronto, esse é o motivo...
- Sr., esse motivo não está registrado em nosso sistema. Não será possível cancelar seu telefone.
- E, quais motivos estão no "nosso" sistema?
- Vejamos: viagem; descontentamento com serviços; mudança de operadora; perda de emprego...
- Isso! Isso! isso! tenho todos esses motivos!
- O Sr. não pode ter todos esses motivos. É preciso escolher um, apenas.
- Sério? Hum... Tudo bem, tudo bem! Deixa-me ver. Inclua um novo motivo no "nosso" sistema.
- Qual?
- Tráfico.
- Tráfico?
- Sim. Tráfico. A senhorita ouviu muito bem! Não se faça de sonsa...
- Mas, Sr., esse não é um motivo plausível. Não será possível incluí-lo em nosso sistema.
- E por qual motivo não será possível incluí-lo em "nosso" sistema?
- Sr., não há um motivo definido, mas... Simplesmente não é possível. O sistema não aceita esse motivo.
- E, por qual motivo?
- Não há um motivo.
- Está vendo, senhorita? Não há motivos.
- Ér... Sr., estou perdendo meu tempo...
- Seu tempo?
- Sim. Meu tempo.
- Quanto tempo você tem?
- Ér... Não sei.
- Está vendo? Não se perde coisas que não se sabe que tem.
- Mas, Sr., isso está me deixando confusa...
- É? Que ótimo, esse é o meu motivo.
- Qual motivo?
- Deixá-la confusa.
- Como assim?
- Como assim o quê?
- Como assim "Me deixar confusa"?
- Assim mesmo, ora!
- Assim, como?
- A senhorita tem um motivo?
- Para quê o Sr. quer um motivo?
- Ora essa! A senhorita quem me disse que eu precisava de um motivo!
- Sim. E, qual o seu motivo?
- Não tenho motivo.
- Mas, é preciso ter um.
- E se eu não tiver, como ficamos?
- Não ficamos.
- E, por que não ficamos?
- Sr., eu sou casada!
- Hum... que pena. Era o único motivo de eu estar aqui paquerando a senhorita. Tenha um bom dia!
- ...

Pelos recantos mais profundos da alma

“Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que abandone tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?”

Pedaço da 1º das "Cartas a um Jovem Poeta" - Rainer Maria Rilke

02/07/2008

Poesia fractal

Tarde. Bem cedo. Logo cedo aos teus murmúrios.
Rios de muros molhados que marejam cedo ou tarde!
Arde. Como arde o andor de coisas velhacas.
Dói. Como cura a mais pura vivência exata: incerta!
Deserta: ainda que tarde arda, anda à espreita nos silenciosos calabouços de nós mesmos.
À esmo. Perdida é que ela se encontra nas mais recônditas sonatas sonolentas.
Lentas, mentem às agruras e aos montes as sementes de porvir.
Devir deve ser e é sempre um mistério anunciado.

Agora é noite. Ela baila suave e mente. agora é tarde e Ela tarda a sair-da-mente
foge como que escapulidamente: sairdamente.
E torna e retorna em sua dança inimaginável.
Ela não é uma borboleta. ela nem é - nem sendo.

Vendo um núcleo de universo à 30 cents. 30 centímetros
de sendas - e não vejo nada, e é istonada: e todo infinito nada mais é que

e o universo está descrito e explicado. , e fatalmente se aproxima do infinito

01/07/2008

Armila: a Cidade das Ninfas

"Ignoro se Armila é dessa maneira por ser inacabada ou demolida, se por trás dela existe um feitiço ou um mero capricho. O fato é que não há paredes, nem telhados, nem pavimentos: não há nada que faça com que se pareça com uma cidade, exceto os encanamentos de água, que sobem verticalmente nos lugares em que deveria haver casas e ramificam-se onde deveria haver andares: uma floresta de tubos que terminam em torneiras, chuveiros, sifões, registros. A céu aberto, alvejam lavabos ou banheiras ou outras peças de mármore, como frutas tardias que permanecem penduradas nos galhos. Dir-se-ia que os encanadores concluíram o seu trabalho e foram embora antes da chegada dos pedreiros; ou então as suas instalações, indestrutíveis, haviam resistido a uma catástrofe, terremoto ou corrosão de cupins.

Abandonada antes ou depois de ser habitada, não se pode dizer que Armila seja deserta. A qualquer hora do dia, levantando os olhos através dos encanamentos, não é raro entrever uma ou mais jovens mulheres, esbeltas, de estatura não elevada, estendidas ao sol dentro das banheiras, arqueadas debaixo dos chuveiros suspensos no vazio, fazendo abluções, ou que se enxugam, ou que se perfumam, ou que penteiam os longos cabelos diante do espelho. Ao sol, brilham os filetes de água despejados pelos chuveiros, os jatos das torneiras, os jorros, os borrifos, a espuma nas esponjas.


A explicação a que cheguei é a seguinte: os cursos de água canalizados nos encanamentos de Armila ainda permanecem sob o domínio de ninfas e náiades. Habituadas a percorrer as veias subterrâneas, encontram facilidade em avançar pelo novo reino aquático, irromper nas fontes, descobrir novos espelhos, novos jogos, novas maneiras de desfrutar a água. Pode ser que a invasão delas tenha afastado os homens, ou pode ser que Armila tenha sido construída pelos homens como oferta para cativar a benevolência das ninfas ofendidas pela violação das águas. Seja como for, agora parecem contentes, essas moças: cantam de manhã."
________________

Pedaço de
As Cidades Invisíveis - Ítalo Calvino.

Máscaras insólitas: a afetação no estilo

O estilo é a fisionomia do espírito. E ela é menos enganosa do que a do corpo. Imitar o estilo alheio significa usar uma máscara.
Por mais que esta seja, torna-se pouco depois insípida e insuportável porque não tem vida, de modo que mesmo o rosto vivo mais feio é melhor do que ela.
Assim, quando os autores escrevem em latim e imitam o estilo dos antigos, é como se usassem máscaras.
A afetação no estilo é comparável às caretas que deformam o rosto. Devemos descobrir os erros estilísticos nos escritos dos outros para evitá-los nos nossos.”

Pedaço d'A Arte de Escrever, de Schopenhauer

29/06/2008

Para verdes o quanto mudas


Preciso ver a tua voz pra dizer
Ver o som da tua voz
Em tu
Tua voz em tu
Tu em tua voz
Tu em teus gestos mais falantes

Uma voz sem os gestos que a conduzem,
É uma voz sem os gestos que a conduzem.

Ver os movimentos que vêem
Junto às palavras
Muda tudo:
O tom da voz muda
Quando
Muda o tom dos gestos
Assim como muda o tom das palavras
Quando
Muda o tom das letras,
E mudam-se os tons,
Mudam-se as letras,
Mudam-se as vozes,
Mudam-se os olhos,
Mudam-se os sons,
Mudam-se os gestos;
Porém muda a voz cala.

Sim, as palavras mudas
Calam.
Muda-se a voz
Quando muda-se o tom das letras
Ficam vermelhas
Cinzas
Azuis
Verdes
E vermelhas novamente

E, verdes...
Para verdes
O quanto mudam-se os tons,
Preciso olhar com os olhos precisos...
Verás.

18/06/2008

Amig@s: a Vós ergo o meu Panteão

Aos meus Amigos, que sem vocês eu não seria. Sem Vós, nem voz. Nem sonho, nem mesmo Nada. Agradeço também aos amigos de meus Amigos, que sem eles, eles não seriam e nem eu.

Ao destino por me presentear, em dois momentos da vida, um Amigo da estirpe de Rodrigo (Pacheco). Pela presença imaculada de nossa real e irrefutável Amizade. Leal e Nobre. Cínico e Apaixonado. Grandioso e Valioso. Rapinoso e Apreciador das grandes obras. Às nossas pivetices desde a escola; ao nosso reencontro na Universidade. Aos nossos Risos. Aos nossos Fracassos. Ao nosso dom de Criar. Aos nossos Abismos, tão vizinhos. Sempre!

Ao Amigo Bob, pela consideração depositada. Pelo respeito. Pela leveza de ser. Pelo mal-humor. Por me aturar. Pelo teu filho Tales.

Ao grandiloqüentíssimo e nobre Amigo, Diogão (França), presente dadivoso dos deuses na minha vida! Sempre presente, na alma minha, pois que esteja em França com sua sorridente e cativante esposa, Manon.

Ao Amigo Tiago (Pacheco), pelo ímpeto de viver, pela energia, pela bravura digna dos grandes navegantes de outrora! Por teu filho João.

Ao Amigo Roger, pela superação de nossas vaidades e construção de uma fortaleza chamada amizade. Ao seu virtuosismo que inspira até as mais insensíveis pedras!

Ao Amigo Diogo, pelo refinamento dos modos, pelo seu olhar fotográfico(n)gênito do mundo. Pelos momentos, tantos, de criação. Pelos registros mais silenciosamente loquazes. Pela discrição abissal e quase-imperceptível do seu amor por todos que o cercam.

Ao Amigo Pedrinho, pelo seu mal-humor. Pelo seu tédio. Pela sua falta de jeito com as garotas. Pela sua idosa jovialidade. Pelos seus ímpetos.

Ao Amigo Breda, pelo seu cinismo pouco deglutível. Pelo seu exemplo contra os mestres-estúpidos. Pela sua poesia aberracional.

Ao Amigo Dodô, pela sua força. Pelo seu futebol aguerrido. Pelo seu Vale do Piancó! Pelos seus silêncios. Pela sua grandeza discreta, apesar deste seu corpo imenso.

Ao Amigo Pedrão. Pelo RaiPTismo. Pelo PIB. Pelo Reino fungi. Pela tua presença sempre marcante. Pelo teu vocal no Orquestra Browniana.

Ao Amigo Raimundo, pela exemplo de guinadas. Pelas seu jeito estabanado. pelo seu sorriso-pra-dentro.

Ao Amigo Pablo, pela sua forma admirável de viver o mundo. Pela sua risada. pelo seu bom humor quase-eterno.

Ao Amigo Leite, pelo seu seu empenho. Pelo seu acreditar. Pelo seu esforço. Pelo seu ativismo.

Ao Amigo Lucas, pela franqueza e honestidade para comigo, sempre. Pelos nossos diálogos. Pelas sessões pseudo-analíticas do "fantástico". Pelos trabalhos em parceria. Pelo seu socialismo que não é o meu.

Ao Amigo Berna, pelo nosso mundo poético particular, sui generis, eu diria. Pelas cervejas compartilhadas, sempre únicas. Pelos seus poemas inatingíveis pela minha pequenez. Por me dar a mão ébria, quando de uma queda sólida num abismo abstrato, há um ano.

Ao Amigo Dimas, pelas bebedeiras e pelo louvor de um mundo artisticamente político. Pela nossa lealdade. Pelas nossas "Poesias de Guardanapo". Pelos teus saraus que não suporto, mas que, de alguma maneira, sempre estou presente. Pelo teu amor à jovem Susa.

Ao Amigo Fernando, pelas suas convicções que quase-me-convencem, pelos diálogos infinitos da mais bela e pura criação surrealista-de-beira-de-mangue. Pelo exemplo que dá a todos nós. Pelo seu olhar de Raio-x. Pelo seu senso de justiça.

Ao Amigo Luwí, pelo nossa primeira impressão de repulsa na Universidade. Pelo nosso espontaneísmo. Pelo nosso Poder Criativo. Pela nossa Música. Pelo teu Violoncelo que soa em todos os recônditos de minha alma.

Ao Amigo Castanha, pelo seu dom de perdoar os erros e a minha ignorância. Pelos nossos debates.

Ao Amigo mago-Edu, pelo "Dá-lhe Seu Cara!". Pelas nossas saídas. Pelos nossos encontros. Pelas farras. Pelas idéias. Pela nossa Filosofia.

Ao Amigo Vicente, pela sua grandiosa presença. Sempre. Sempre. Sempre.

Aos amigos que não constam nessa pequeníssima lista. Vocês também constam. Agradeço-vos também. Aos Amigos de outrora. Os Amigos de Barra. Os Amigos da infância nas Candongas. Não me esqueci de vocês. Nunca me equecerei.

À amiga Tia Lú, pela sua poesia. Pelos seus lamentos. Pela sua impenetrável sordidez metafórica e seu incomensurável espírito de amiga. Pela sua companhia. Pelos nossos planos de papel. Pela sua amizade.

À amiga Raquelzinha, pelos tantos momentos agradáveis. Pela sua maluquice centrada.

À amiga Susa, pelo seu estridente deboche das situações mais constrangedoras. Pelo seu toque poético em tudo quanto é seco.

À amiga Domitila, pela grandiosidade de seu espírito. Pela sua sabedoria. Pela sua dança encantadora. Pelos nossos encontros e desencontros. Pela nossa história.

À amiga Fê, pela sua forma direta de ser. Pelas nossas risadas infindáveis. Pela sua filha linda.

À amiga Rebecca, pelo seu dom de compreender. Pelo seu modo tão sublime e discreto de ser.

À amiga R. Fert, pelas trocas insubstituíveis de mágicos instantes de plena poesia. Pelos despertares. Pelos agitos da alma no silêncio dos mundos.

À amiga Jú (psico) pelo respeito. Pela sua inteligência. E pela dor compartilhada. Pelos motivos futuros que hão de nos alegrar.

À amiga Taci, pela sua gargalhada. Pela sua elegância mesmo nos momentos mais inoportunos. Pela sua sensibilidade. Pelo seu falar manso.

À amiga Maira, pelo ronronar de gata quando coço seu queixo. Pela geniosidade de seu sedutorismo. Por ter caído de pára-quedas nesse Panteão seleto.

À amiga Aline, por ser lienígena. Por me motivar a falar tantas asneiras. Por falar muito. Por ser estabalhoada, divertida e chata às vezes. Por fazer parte de tudo isso.

Especiais à amiga Pat, pela sua inteligência, candura e estima. Pelos nossos papos intrigantes e reveladores de saberes um ao outro. Pela sua gentileza. Pela integridade de você. Pelo seu amor ao meu Amigo.

À amiga Dani, pela sua meiguice e por sua presença sempre maior que o seu próprio tamanho. Pelo seu estilo único. Pelo seu despojamento. Pela sua "dancinha de mãos". Pelo seu respeito.

À amiga Úrsulla pelo seu desprendimento. Pelo seu bom humor irretocável. Pela sua finesse destranbelhada. Por seu filho Tales.

À amiga Mila, pela sua doçura e sua meiguice. Pelo seu sorriso particular. Pela sua beleza. Pelo seu olhar singelo. Pela sua honestidade. Por inspirar.

À amiga Kelly, pela sua femilitude. Pela sua sagacidade. Pela sua inteligência. Pelo seu andar admirável. Pela sua sensibilidade artística. Pelo seu dom de fazer marejar os olhos mais metais, num instante único de raiva contra os mestres estúpidos.

À amiga Maroca, pela sua serenidade. Pelo seu amor a Tiago e Joãozinho. Pelo seu ar discreto. Pela sua grandeza pouco aparente.

À amiga Mari Cota, pelo seu espontaneísmo. Pelo inesquecível forró de Arcoverde. Pelo seu sorriso bonito. Pelo seu jeitinho cativante.

À amiga Hanna, pelos seu rosto lindo. Pelos seus desenhos encantadores. Pela sua risada expressiva. Pelo seu olhar discretamente penetrante. Pelos seus impulsos mais sublimes. Pelas suas sentimentalidades.

À Raissa, pelo seu amor - que amei enquanto o tive. Pelo seu carinho - que acariciei enquanto o tive. Pela sua vontade de acertar, mesmo quando erra. Pela sua jovialidade e encanto - apesar de sua imaturidade. Pela seu Eu que busca crescer.

Às amigas que não constam nessa pequena lista. Não me esqueci de vocês. Vocês também constam.

A todas as mulheres que já foram minhas-comigo, e as que ainda estão na imaginação. Às que não conheço, mesmo depois de tanta convivência. Às que ainda conhecerei sem a mínima convivência. Amei-as, amo-as e amarei-as. Muito.

Agradeço ainda a Bethoveen, pelas suas sinfonias, sem as quais meu espírito seria aleijado.

Ao Pink Floyd, pela grandiosidade em tempos fractais.

Ao Radiohead, por me colocar sempre no limiar de mim mesmo.

Àos meus amigos escritores, que não foram meus amigos até que fossem mortos. Todos. De Homero a Artaud. De Kafka a Camus. Vocês também sou eu.

A todos os bons Poetas, de Erickson Luna a Lao-tsé. De João Cabral a Baudelaire. De Drummond ao Mendigo da Esquina.

A Nietzsche, meu mentor. Por sempre me atirar ao chão e me dar a mão pra levantar. Pelo seu bigode. Pela sua altivez. Pelo seu Dionisismo. Pelo seu ímpeto. Por ser a mola de cima e a de baixo de meu próprio abismo.

A Dom Quixote, por dar-me o gosto infinito pelas alturas dos mais elevados píncaros dos sonhos.

Por fim, agradeço ao Zaratustra de Nietzsche, por me ensinar a ser duro e nobre como um diamante, em uma época em que o carvão de cozinha é tido como o tipo ideal.

Tod@s vocês são os meus Deuses. A vocês eu ergo o meu Parthenon, pois que vocês compõem o meu Panteão.

Vós sois aquilo que de mais precioso já conquistei na vida. Eternizo-vos, nesta minha mais singela, grandiosa e verdadeira obra - que é grandiosa justo pela sua verdade.

Amo-vos.

André Raboni.