08/04/2008

Escrever também é um remédio

O estilo é a fisionomia do espírito. E ela é menos enganosa do que a do corpo. Imitar o estilo alheio significa usar uma máscara.”

Vrummm… Queixas, queixas, queixas…

“Minha filha, vá tomar um banho”, queixou-se da filha a mãe ao telefone.

Por mais que esta seja, torna-se pouco depois insípida e insuportável porque não tem vida…”

Vrummm… Queixas, queixas… Queixas as mais diversas dos passageiros do coletivo que circulava nas ruas do Recife, e acabava de “queimar” mais uma parada de ônibus. O motorista estava enlouquecido e o cobrador sorria…

“Minha filha, o que você tem é estress… Olhe, relaxe! Eu estou no Derby ainda, e não posso sair voando!” Mudou o tom de sua voz a mãe que tentava acalmar a filha pelo telefone, na poltrona ao lado da minha.

Eu sentado, lia em silêncio a obra do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, A Arte de Escrever, e, em alguns momentos era interpelado pela conversa da mãe com sua filha, e pelas arrancadas bruscas do motorista do ônibus e os risos sarcásticos de canto de boca do cobrador, que olhava para os passageiros como que pensando: “Vocês não estão gostando? Pois eu estou me divertindo muito! Acelera, motô!”.

Continuei minha leitura, “… porque não tem vida, de modo que mesmo o rosto vivo mais feio é melhor do que ela. Assim, quando os autores escrevem em latim e imitam o estilo dos antigos, é como se usassem máscaras…”

“Menina, se acalma, vá! Olhe: tome um banho, jogue uma água fria na cabeça, e deite para descansar que eu chego já, já.”

O motorista, após algumas queixas de um passageiro que gritou “Motorista, tu num tá carregando gado não, visse?!”, de forma surpreendente desacelerou o ônibus, e foi desta vez lento até demais, como que querendo provocar.

A mãe ao telefone, na poltrona do meu lado, por sua vez, interrompeu a conversação com sua filha, fazendo uma cara muito feia, falou: “Motorista, acelera essa coisa!”

Voltei à minha leitura, pág. 79, Capítulo 3º, Sobre o Estilo e a Escrita: “A afetação no estilo é comparável às caretas que deformam o rosto.

Agora, a mãe engrossou a voz ao telefone: “Olha, menina: você só tem 18 anos, e, eu não posso te criar na base de remédios para dormir, está me ouvindo? Vá tomar um banho, que eu chego já, já!”

Brumm…O motorista novamente voltou a acelerar. Um passageiro se levantou e pediu parada, ao que saiu andando e reclamando: “esse motorista é um palhaço… E, olha a cara desse cobrador, deve ser outro palhaço, deveriam estar em um circo… Blá, blá, blá…” Desceu as escadas reclamando, e talvez esteja se queixando até agora.

Devemos descobrir os erros estilísticos nos escritos dos outros para evitá-los nos nossos.” Disse-me, Schopenhauer.

A mãe, neste instante, acalmou sua voz ao telefone, e, falando mansinho, perguntou à filha: “Como foi a novela hoje? Ah, não assistiu? E o BBB, foi legal? Fulano beijou ciclana? Poxa, você não viu também?”

Fechei o livro. Olhei para os olhos da mãe da filha, ela falava sobre o Big Brother Brasil. Fiquei pensando: “Caramba, essa mãe deve estar passando muitas dificuldades com sua filha, que deve estar vivendo alguns distúrbios psicológicos.”

Guardei meu livro na bolsa, estava próximo da minha parada de descida. Lancei um último olhar para a mãe, que expressava em sua rostidade um melancólico ar de desespero controlado, trasmitido pelo seu “sorriso sem graça”.

Percebi que, com todas as suas forças, aquela mãe lutava desesperada para tranqüilizar sua filha, pelo telefone, falando sobre a novela e sobre o BBB, ao mesmo tempo em que lhe proibia de tomar remédios para dormir.

Não seriam as novelas e o BBB, também remédios para dormir? Dormir um sono dogmático ante o desespero da vida? O desespero inato e irrevogável de toda vida de quem vive em nossa sociedade, com o mínimo de visão além do próprio umbigo?

Levantei, puxei a cordinha do ônibus, e desci. Caminhei até minha casa, olhei para a TV, erguida na sala qual um altar dos antigos babilônios… Onipotente…

Dei de ombros, tomei um banho e, nesta noite, não consegui dormir direito; tive insônia.

Liguei meu computador e pus-me a escrever esta crônica, que é um reflexo impuro de todo desespero único e precioso da vida. Da vida que não vive e nem é vivida sem um pouco de desespero.

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