No Rio de Janeiro, uma dona-de-casa de 52 anos desejava tanto uma corrente de ouro, que a furtou de uma joalheria, engolindo-a. A notícia parece corriqueira. Poucas peripécias nos surpreendem nesse paraíso da rapina chamado Brasil.
Moacyr Scliar, dos melhores escritores brasileiros vivos, deu um ‘tratamento’ literário na notícia acima, e lhe concedeu outras dimensões, novas perspectivas. Relatado em forma de carta-depoimento pela acusada do furto, o caso abandona as dimensões meramente jornalísticas ou policiais do acontecimento, revelando as próprias limitações da linguagem jornalística (e o quanto carecemos de ir além), além de tocar nas profundidades da condição humana.
Adentra os meandros das corruptelas políticas, dos panetones de engodo, das imoralidades do dinheiro na cueca, e, para além disso, as configurações da má distribuição de renda no País, num platô da economia do desejo.
Tais proporções alcançadas por Scliar fogem das vulgaridades linguísticas de um tal “jornalismo profissional” a que estamos habituados; tal habituação também cinge o próprio hábito da leitura, do entendimento, trancafiado nas portas das delimitações de significados. Tais proporções se afastam dos nossos padrões de pressupostos morais (no sentido mesmo de justificar o absurdo do acontecimento), tangendo, não sem certa maestria, nuances dos escritos de Albert Camus – especialmente de O Estrangeiro, onde um assassínio é explicado pela luminosidade do sol na face, que ofusca a vista de um homem com uma arma em punho.
A narrativa abaixo revela não a purulência de uma alma criminosa. Revela as nossas sujeições à uma condição humana limitada por uma ordem jurídica e social que, ao mesmo tempo, pune com rigor moral e penal uma senhora que desejava uma corrente de ouro, e recalca-se às vistas grossas para o câncer da grande corrupção política.
Uma ordem que permite o indivíduo assistir com passividade os seguidos escândalos da política nacional, sem que o salte da alma a disposição impetuosa de levantar o traseiro da poltrona para fazer qualquer coisa que seja, no sentido da cidadania e da vigilância política.
Espera-se cerimoniosamente a hora da próxima novela, ou da próxima Copa do Mundo…
“A corrente da vida”
por Moacyr Scliar
para a Folha de S.Paulo
Mulher é presa após engolir corrente de ouro em joalheria. Uma dona-de-casa de 52 anos foi presa após engolir uma corrente de ouro numa joalheria do centro do Rio. Ela foi indiciada por tentativa de furto. Uma radiografia confirmou que a corrente está em seu estômago. Quando expelir a peça, a mulher será encaminhada à cadeia. Segundo a polícia, Fátima Carceiro foi a uma joalheria e pediu para ver joias. Enquanto tirava peças da vitrine, o vendedor percebeu o sumiço de uma corrente. Ele desconfiou e chamou a polícia. Fátima admitiu o furto.
“SENHOR” delegado, antes de mais nada, e ao contrário de outras pessoas acusadas que clamam inocência, quero lhe dizer que admito minha transgressão. Mais: sempre soube que acabaria presa. É um destino que está no meu nome. Quem se chama Carceiro, senhor delegado, dificilmente escapará ao cárcere, não é mesmo?
Isto posto, quero dizer que não estou arrependida. Ao contrário, sinto-me perfeitamente tranquila. Fiz o que queria fazer. Há muito tempo eu cobiçava esta corrente de ouro, senhor delegado. Era a joia da minha vida, feita por um artista joalheiro especialmente para mim. Prova disso é que ficou exposta um tempão e ninguém a levou. A corrente de ouro estava à minha espera.
Mas havia um problema: eu não tinha dinheiro para comprá-la. Essa desigual distribuição de renda, o senhor sabe… Uma coisa que precisa ser corrigida, e decidi tomar a iniciativa neste sentido. Resolvi apossar-me da corrente. Não foi difícil: entrei na joalheria, pedi para ver pulseiras, anéis, colares. E a corrente. Enquanto o vendedor tirava uma joia da vitrine eu, mais que depressa, engoli a corrente. Engoli sem água, em seco, e olhe que uma corrente não é um comprimido qualquer. Mas é que a corrente queria ser engolida, sabe? Queria, por assim dizer, pular para dentro de mim.
Agora: tive um pequeno azar. Eu esperava que o vendedor, tendo colocado tanta coisa sobre o balcão, não desse falta da corrente. Mas era um obsessivo esse vendedor. Sabia de cada joia da loja, e assim imediatamente perguntou pela corrente. Chamou a polícia e aqui estou. Muito contente, senhor delegado. Fiz o que podia fazer. Eu não sou daquelas pessoas que escondem dinheiro na cueca, em primeiro lugar porque não tenho contato com certos políticos e porque não uso cueca, só calcinha, que não serve para essas coisas. Depois, engoli algo que vale a pena. Não foi um panetone vagabundo, desses que os políticos distribuem no Natal. Foi uma corrente de ouro. Que está dentro de mim, quietinha e feliz.
Por pouco tempo, acha o senhor. E é aí que o senhor se engana, senhor delegado. Porque sofro de prisão de ventre: posso passar dias sem evacuar. Isto, que sempre foi um transtorno, agora revela-se um benefício, permitindo que eu fique mais tempo com a minha corrente. Se e quando ela sair, não será mais a mesma corrente. Algo dela, uma pequena partícula que seja, terá se desprendido e terá sido incorporada a meu organismo. Eu e a corrente seremos uma coisa só, senhor delegado. A corrente da vida levou-me à vitória, deu-me uma recompensa que ninguém jamais me arrebatará.”
* MOACYR SCLIAR é escritor.
moacyr.scliar@uol.com.br